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Opinião|Relatórios de Inteligência Financeira

O RIF tem a indiscutível natureza de ser a própria ‘notitia criminis’ do crime de lavagem de dinheiro. Ele faz as vezes do B.O. – Boletim de Ocorrência dos crimes comuns. Alguém consegue imaginar a hipótese de um promotor ou delegado de polícia primeiro instaurar uma investigação para depois solicitar à vítima que lavre um boletim de ocorrência? E como se teria conhecimento dos fatos supostamente criminosos antes mesmo de serem informados - de forma oficial?

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convidado
Por Marcelo Batlouni Mendroni
Atualização:

O combate à lavagem de dinheiro teve início nas nações mais ricas do mundo, estendendo-se, posteriormente, a outros países. No intuito de tornar esse combate mais eficaz, foram criadas as denominadas Unidades Financeiras de Inteligência, mundialmente conhecidas por FIUs - Financial Inteligence Units ou UNITs – Unidades de Inteligência Financeira. Cada país subscritor do acordo internacional, incluindo o Brasil, se comprometeu a criar a sua própria “Unidade de Inteligência Financeira”, com a função de receber e concentrar as informações a respeito das operações financeiras suspeitas de encobrir (ocultar e/ou dissimular) atividades de lavagem de dinheiro e repassá-las aos órgãos de persecução com atribuição para a investigação e o processamento criminal, que são, por natureza, Polícias e Ministérios Públicos.

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Na reunião do Grupo de Egmont realizada em Roma, em 1997, definiu-se Unidade de Inteligência Financeira como uma agência nacional, central, responsável por receber (e na medida do possível requerer), analisar e distribuir às autoridades competentes as “denúncias” sobre as informações financeiras com respeito a presumidos procedimentos criminais requeridos pela legislação ou normas nacionais para impedir a lavagem de dinheiro.

Essas UNITs (ou FIUs) devem, por Lei (no Brasil a n° 9.613/98), receber informações acerca de determinadas operações financeiras/comerciais, segundo critérios preestabelecidos e, após detalhada análise, considerando a existência de operações suspeitas, reencaminhar as informações, através de um RIF – Relatório de Inteligência Financeira, aos órgãos de persecução onde o crime deve ser apurado, repito, as Polícias e Ministério Públicos. A Unidade Financeira de Inteligência no Brasil recebeu o nome de COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras.

Pois bem. Discute-se no âmbito dos Tribunais Superiores do Brasil, STJ e STF, acerca da legalidade da iniciativa da remessa por iniciativa própria - “de ofício”, ou seja, sem prévia solicitação das Polícias e Ministérios Públicos, destes RIFs. Há entendimentos no sentido de que estes RIFs somente podem ser enviados a estes órgãos de persecução, no âmbito de uma investigação já previamente instaurada, e ainda mediante solicitação/autorização judicial, não podendo, então, servirem para orientar a respectiva instauração. Veja-se: STJ. “Na decisão, tomada por maioria, o colegiado estabeleceu que a autoridade policial não pode solicitar relatórios de inteligência financeira diretamente ao Coaf, sem autorização da Justiça”.

https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/06092023-Sexta-Turma-aplica-jurisprudencia-e-declara-ilicitos-relatorios-do-Coaf-requisitados-diretamente-pela-policia.aspx

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Mas esse entendimento, smj, é completamente equivocado!

Veja-se, antes de nada, o teor expresso do artigo 15 da Lei n° 9.613/98:

Art. 15. O COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.

Resta cristalino, pela lógica da Lei, que o COAF deve ter a iniciativa de comunicar às autoridades competentes, e não de que deve ser provocado por elas, “quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito”. Se a Lei pretendesse que o COAF somente fosse provocado à sua comunicação teria dito, p. ex. “As autoridades competentes solicitação ao COAF, mediante autorização judicial...”. Mas a Lei, que poderia ser mais expressa, se quisesse, não menciona uma atividade passiva de “ser solicitado”, menos ainda “mediante autorização judicial”. A Lei, seguindo os parâmetros estabelecidos internacionalmente estabelecidos para a eficiência, refere claramente uma iniciativa própria do COAF, diretamente, sem maiores entraves – exatamente para viabilizar a rapidez e eficácia da investigação de lavagem de dinheiro.

O RIF tem a indiscutível natureza de ser a própria notitia criminis do crime de lavagem de dinheiro. Ele faz as vezes do B.O. – Boletim de Ocorrência dos crimes comuns. Alguém consegue imaginar a hipótese de um Promotor ou Delegado de Polícia primeiro instaurar uma investigação para depois solicitar à vítima que lavre um boletim de ocorrência para lhes informar sobre a ocorrência de um delito? E como se teria conhecimento dos fatos supostamente criminosos antes mesmo de serem informados - de forma oficial?

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A lógica da própria existência de uma UNIT, como o COAF, é exatamente receber informações de entidades (Bancos, Bolsa de valores, Cias de Seguros, Imobiliárias, Joalherias, lojas de automóveis, barcos, aviões, Factorings, etc.), analisá-las, e concluindo por alguma suspeita, elaborar um RIF para enviá-lo ao Ministério Público e à Polícia. O COAF, como qualquer outra Unidade de Inteligência Financeira criada mundo afora, é que concentra o recebimento das informações preliminares. Depois deve analisá-las para elaborar ou não um RIF. Então, estas instituições, Ministério Público e Polícia, não têm conhecimento dos dados que são diariamente enviados ao COAF até que eles lhes sejam repassados. Se elas não têm o conhecimento dos dados sobre um delito, então como, antes disso, “instaurar” algum procedimento investigatório, para depois solicitar a um Juiz a obtenção do RIF ao COAF? Em outras palavras, é o RIF, ele mesmo, que serve para apontar, indicar ao Ministério Público e à Polícia da existência de operações suspeitas (a priori), para que estas operações referidas sejam analisadas de forma mais acurada pelos órgãos oficiais de investigação. O COAF não pode e não investiga os crimes, apenas reúne e ordena informações recebidas. Portanto, o COAF precisa ter iniciativa de encaminhar os RIFs ao invés de aguardar solicitação por parte de quem precisa investigar e desconhece a existência das suspeitas.

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Ademais, os RIFs certamente não têm alcance de afastamentos judiciais de sigilos bancários ou fiscais. Os dados que integram os RIFs são apenas indicativos de movimentações financeiras ou de bens. Não trazem detalhes necessários, por exemplo, das origens, datas, números de contas e de valores específicos diários movimentados. Estes são dados imprescindíveis no âmbito de uma investigação de lavagem de dinheiro, e estes sim, só podem ser obtidos através de autorização judicial. Mas os RIFs servem para indicar ou alertar os órgãos de persecução acerca da existência de operações ou movimentações suspeitas, sem o que, não há como saber.

A partir do recebimento dos RIFs, e só a partir de então, é que as autoridades competentes são avisadas, alertadas, e podem reunir condições para definir sobre o cabimento ou não da instauração de um procedimento investigatório criminal ou um inquérito policial para dar início à investigação criminal daquelas circunstâncias referidas no RIF. Não há assim, evidentemente, como alguns alardeiam, nenhuma “devassa” de informações nesse procedimento, absolutamente lógico e sistemático, ao contrário, é a única forma de atuação eficiente para as Autoridades agirem em nome da sociedade.

Exigir das autoridades que “adivinhem” a existência de comunicações suspeitas ao COAF, para então instaurar uma investigação e com base nela, ainda vazia, requerer uma autorização judicial para obter o RIF no COAF, seria exigir que agissem de forma “inversa”, temerária e até abusiva, resultando em evidente negativa judicial, por falta de mínimos elementos de convicção. Seria, data vênia, no jargão popular, como “colocar a carroça na frente dos burros”.

Inverter a lógica natural das coisas, não ajuda a combater a lavagem de dinheiro, ao invés, a prejudica.

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O verdadeiro problema é o grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários”. Mauro Cappelletti.

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Marcelo Batlouni Mendroni
Procurador de Justiça/SP. Foto: Arquivo pessoal
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