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Opinião|Reparação como justiça social: por um 13 de maio além da recusa ou da aceitação

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Por Fernanda Thomaz

Há 136 anos, o Dia da Abolição da Escravatura, marcado por este 13 de maio, tem sido uma data controvérsia para o imaginário social no Brasil, principalmente pelo seu significado histórico em torno da abolição da escravatura e seus impactos no presente. Mesmo assim, o dia de hoje ajuda também lembrar de um fato ocorrido recentemente. Cerca de 15 dias atrás, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, declarou que seu país foi responsável pelos crimes contra as pessoas negras e indígenas na época colonial, sobretudo com a escravidão.

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O pronunciamento aconteceu em um contexto bastante simbólico para a democracia no país. Foi exatamente no dia em que se comemorava a chamada Revolução dos Cravos, a qual representa o fim da ditatura portuguesa e um dos impulsos importantes para as independências dos países africanos que foram suas ex-colônias.

A fala se deu logo após a realização do Fórum Permanente para os Afrodescendentes das Nações Unidas, na Suíça, que teve como tema o “Combate ao Racismo Sistêmico, Justiça Reparatória e Desenvolvimento Sustentável”, entre os dias 6 e 19 de abril de 2024. Nesse evento, o Brasil foi provocado a cobrar o reconhecimento e responsabilidade de Portugal pelos danos causados com colonialismo e escravidão. Instigou-se também que o Brasil tivesse uma maior participação nos debates internacionais sobre reparação.

Nesse contexto, a declaração gerou polêmicas fervorosas entre grupos políticos e foi rapidamente rebatida por parlamentares portugueses. O próprio presidente ressaltou, na sequência, que não havia programa de ação específico para reparar as antigas colônias, afirmando que a cooperação que Portugal vem realizando, há quase 50 anos com essas regiões, consiste em uma espécie de reparação. Não dá para negar a importância desse reconhecimento.

Entretanto, o que, de fato, isso tudo nos provoca? Provoca repensar no significado que queremos traçar para este 13 de maio. Precisamos ultrapassar a controvérsia da recusa ou aceitação a data como algo valorativo para população negra. Na verdade, precisamos caminhar e trazer a simbologia desta data para reivindicar e projetar um futuro mais digno para as novas gerações. Precisamos falar de reparação da escravidão! É necessário trazer este debate para o domínio público e para o imaginário social, como uma forma de reconhecer esse passado violento, com grave violações de direitos humanos, e fazer com que compense as populações do presente. Afinal, não tem justiça e enfretamento ao racismo sem reparação.

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A questão aqui não é invalidar a importância da memória, mas, ao contrário, fazer com que a memória se torne o instrumento efetivo para reconhecer e reparar os traumas e danos do passado. Falo aqui de um país que aboliu oficialmente a escravidão, mas deixou todas as feridas do sistema escravistas expostas. A violência, a desumanização e as piores condições de vida que alarmaram a população escravizada e liberta ganharam novas roupagens e continuaram assolando a vida de milhares de brasileiros de descendência africana. Hoje, presenciamos o genocídio de jovens negros cotidianamente, as precárias condições de trabalho, saúde e educação de homens e mulheres negras, por exemplo.

Além do pronunciamento do presidente português, a reparação tem sido fortemente conclamada no plano internacional. Já no ponto de vista nacional, esse debate tem sido tímido, mas temos algumas provocações recentes. Um exemplo é o inquérito civil do Ministério Público Federal contra o Banco do Brasil, devido à participação ativa dos seus acionistas no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, sobretudo no período que este era ilegal, a partir de 1831.

Em outro paralelo histórico, legado da Conferência de Durban, em 2002, para as discussões sobre política reparatória tem sido imprescindível para o mundo. No Brasil, apesar do protagonismo dos movimentos negros brasileiros na época, logo após esse evento, o debate arrefeceu, abrindo portas para uma reflexão mais ampla sobre política de ação afirmativa. No contexto internacional, a reparação tem avassalado muitos diálogos e esquentado as preocupações dos Estados e organismos africanos e afrodescendentes. A União Africana, que é um órgão de cooperação entre os 55 países africanos, tem sido ativa nos debates sobre reparação, criando comissões e exigindo justiça reparatória aos países europeus. Nos últimos anos, a União Africana tem estabelecido diálogos com a Comunidade do Caribe (CARICOM) em torno da temática. A CARICOM tem a Comissão de Reparação, desse 2013, que visa estabelecer princípios legais, morais e éticos da cobrança por justiça reparatória às nações europeias.

Em alguns países, as discussões sobre política reparatória retomaram com mais força após a publicação do manifesto produzido pelo movimento Black Lives Matter, em 2016. O argumento era de que os descendentes de pessoas escravizadas deveriam ser compensados materialmente devido aos danos que se estenderam por gerações, sobretudo, devido ao uso do trabalho forçado das vítimas do comércio escravista transatlântico para as Américas. Sem contar que a morte de George Floyd também trouxe um vigor maior ao debate, provocando uma enraizada reflexão no plano global em torno do racismo e das mazelas da escravidão.

Nesse ínterim, Dinamarca, Holanda, França e Reino Unido pediram desculpas pelo colonialismo e escravidão. Os pedidos de desculpas são considerados o primeiro passo do reconhecimento de um crime a ser reparado. Além dos Estados, até empresas e instituições chegaram a pedir desculpas pelo envolvimento no comércio escravagista. Um exemplo foi o mercado de seguros Lloyd’s de Londres que pediu desculpas, em 2020, por fazer seguro dos negociantes do comércio transatlântico contra perdas possíveis de pessoas escravizadas e de navios, durante 300 anos.

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No entanto, é preciso avançar mais. Os pedidos de desculpas precisam ir além. Há críticas contundentes de que a maioria dos países que se beneficiaram com a escravidão não emitiram pedidos formais de desculpas. Fizeram apenas comunicados de arrependimento, deixando nas entrelinhas que as vítimas do tráfico não merecem desculpas formais.

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Em vários lugares do mundo, tem-se discutido o papel e enriquecimento de empresas, instituições e famílias com o comércio transatlântico de pessoas escravizadas e com a escravidão. No Brasil, a situação é um pouco mais complexa. A história da escravidão do país e sua relação com o tráfico de africanos escravizados, assim como sua condição de ex-colônia portuguesa e a forte relação de Portugal com a venda de pessoas através do Oceano Atlântico, tem gerado múltiplas expectativas e caminhos em torno da justiça reparatória. É um debate que envolve tanto Estados e instituições europeias, sobretudo portuguesas, quanto famílias e instituições brasileiras que participaram e se beneficiaram com a escravidão e com o comércio de pessoas.

É preciso olhar com cuidado e avançarmos no debate sobre reparação para que pedidos de desculpas não sejam palco apenas para propaganda, oportunismo político ou mesmo palavras ao vento. Clamar por reparação não é um ato de humilhação, tampouco se configura em ataques às pessoas brancas ou aos países europeus. A reparação é um conceito político de justiça que defende a necessidade de promover compensações. Cabe ressaltar que a questão não é meramente de dinheiro, mas o direito de exigir responsabilidade aos que se beneficiaram e contribuíram para a existência de uma economia de mercado que tem produzido, historicamente, relações desiguais no mundo. O impacto da escravidão, corporificado no racismo e segregação, gerou desigualdades econômicas estruturais – o que necessita ser equilibrado.

A reparação é considerada uma espécie de cura aos danos causados às vítimas de uma violação. Reparar é não equiparar a partir do marco zero, como se nada estivesse acontecido. Não é possível trazer pessoas de volta, nem aliviar dores e transformar memórias, ou seja, é impossível voltar no tempo. Entretanto, reparar serve fundamentalmente para trazer dignidade e responsabilidade social aos sujeitos do presente, com vistas a uma sociedade mais justa e igualitária.

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Fernanda Thomaz
Professora e pesquisadora da história da África pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pós-doutora pela Universidade de Ibadan, da Nigéria, e pelo Instituto Max Planck, da Alemanha. É coordenadora de Memória e Verdade da Escravidão no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Foto: Arquivo pessoal
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