Pode parecer um choque para muita gente que se fale, em 2024, de revisão de acordos assinados há anos por empresas chamadas de empresas corruptas.
O erro já começa aí, de achar que empresa é corrupta. A cultura, dentro de uma empresa, pode ser corrupta, mas empresas são seres inanimados.
As pessoas com poderes dentro dela é que imprimem uma cultura de corrupção, de compliance de mentirinha.
Acordos civis, desde o Direito Romano, estavam ligados a um princípio em latim que se traduz como “o contrato faz lei entre as partes”. Para quem tem 50+, é o tal da “pacta sunt servanda”.
Quando a Lei da Empresa Limpa, a 12.846/13, foi aprovada e sancionada no Congresso naquele contexto de protestos de 2013, ela saiu com diversas imperfeições, que se tentou corrigir por medida provisória que perdeu eficácia e depois um regulamento, decreto na forma, editado pela então Presidente da República.
Tanto na lei quanto no decreto falava-se num acordo de leniência que, inicialmente, mais de um órgão queria usar, mas para fins distintos.
De um lado, o Ministério Público, sobretudo o Federal, ligado à Operação Lava Jato, mas não somente àquela operação, parece ter visto uma forma de induzir acionistas de grandes empresas envolvidas em corrupção – pelo menos aqueles que não estavam presos – a assinarem acordos de leniência, extensíveis às pessoas físicas também.
Acordos assinados então pelo Ministério Público não estavam sendo assinados inicialmente pela Advocacia Geral da União, pela Controladoria Geral da União ou pelo Tribunal de Contas da União, com relação principalmente à Lava Jato.
Havia um descompasso entre os órgãos, para colocar de uma forma branda. E, enquanto isso, ricos empresários e nem sempre ricos empregados de empresas envolvidas em corrupção e lavagem de dinheiro não viam a hora de acordos serem fechados e homologados pelo juízo criminal, como eram de fato aqueles com o Ministério Público Federal.
Assim presos sairiam da cadeia e provas seriam produzidas para viabilizar outras prisões e medidas, sem entrar em juízo de valor aqui sobre os fins, alguns publicamente questionados por muita gente e outros defendidos por outra gente.
Os acordos com a AGU e CGU poderiam ter outro fim importante: o de desbloquear empresas que eram e são importantes para a economia nacional e às vezes até regional, eis que algumas operavam com excelência operacional fora do Brasil também.
O que aconteceu com a deflagração de múltiplas fases de várias operações, Lava Jato inclusive, mas não só ela, foi uma onda de bloqueios cautelares que limitaram o mercado, criando uma indesejável concentração nas mãos de quem não os sofreu.
O que isto mostra é que dois sistemas concorrentes de leniências foram criados, um no cível, com a AGU e a CGU articulando-se, e o MPF, no criminal, com sinais de convergência nos últimos tempos, dentro de um contexto controverso que envolveu há alguns anos iniciativa de um Ministro do Supremo Tribunal Federal e até bem mais recente, a respeito de um protocolo anunciado entre os órgãos e como uma proposta de conciliação dentro de ação em curso no mesmo tribunal.
Em qualquer dos casos de leniência, a dúvida sempre existiu sobre a exatidão do cálculo dos montantes a serem pagos pelas empresas, em seus próprios nomes e também num sistema que, numa amostra analisada há alguns anos, parecia permitir um sistema de crédito do que seria pago pelas pessoas físicas cobertas pelas leniências.
E essa dúvida terminava sendo aplicável tanto com relação às multas, como com relação à reparação integral dos danos causados, ou ressarcimento dos danos causados. E havia e ainda há um crossover na questão das multas e reparação de danos, ou seu ressarcimento.
Para ilustrar, o decreto que regulamentou a lei 12.846/13 previa que multas seriam reduzidas em “um e meio por cento no caso de comprovação de ressarcimento pela pessoa jurídica dos danos a que tenha dado causa” (cf. o artigo 18, inciso II, para referências).
Simplificando a questão, a revisão do decreto que regulamentou a lei 12.846/13 em 2022 fez reduzir para um por cento a redução da multa, que se aplicaria também no caso de “inexistência ou falta de comprovação de vantagem auferida e de danos resultantes do ato lesivo” (cf. o artigo 23, II, b), para referências).
A reparação integral dos danos deveria incluir exatamente o que? Entram no cálculo os valores dispendidos pelos múltiplos órgãos com investigações, inclusive eventuais diárias e custos de viagens, processos de apuração de responsabilidade, além de valores de propinas pagas, prejuízos na liquidação de valores, creditando-se eventuais ganhos em investimentos que eventualmente gerem ganhos?
Esses parâmetros precisam ser mais bem desenvolvidos, já que se o momento parece extremamente oportuno, de desenvolvimento de um protocolo com regras para a celebração de acordos de leniência. E, quem sabe, vale a pena fazer um levantamento de como funcionam sistemas paradigmáticos estrangeiros no percurso.
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