O documentário "Escola Base - Um repórter enfrenta o passado", do Globoplay, já fez história. Não pelos prêmios que tem recebido, mas por firmar-se como obra definitiva do caso mais conhecido de mea culpa feito pelo jornalismo no Brasil. O jornalista Valmir Salaro faz uma viagem ao seu arrependimento - e o de toda a imprensa nacional - por ter noticiado, há 28 anos, uma falsa acusação de abuso contra crianças de 4 anos.
O caso foi amplamente divulgado pela mídia sem dar espaço para a defesa dos acusados. O delegado determinou a prisão de todos antes de as investigações chegarem ao fim. A Escola Base, em São Paulo, foi pichada, e os seis envolvidos sofreram ameaças de morte. Eles tiveram suas reputações e vidas arruinadas para sempre, embora tenham sido inocentados, e o inquérito arquivado por falta de provas após a troca de delegado e cerca de três meses depois da primeira notícia.
O repórter reencontrou os acusados para fazer o documentário. Na ausência da dona da escola, já falecida, o acerto de contas com o passado veio pelo encontro com o filho do casal, que à época era criança. Tão grandioso quanto o esforço para expor essa cicatriz horrenda do jornalismo, matéria obrigatória nas faculdades de Comunicação, é o ensinamento que o filme nos traz ao mostrar a importância que o reconhecimento de um erro pode ter para a dignidade da pessoa humana e para a realização de Justiça.
Errar é humano. Temos consciência disso e recorremos ao ditado quando somos flagrados praticando um erro indisfarçável. Mas recusar-se a admitir um erro e a corrigi-lo é muito comum em nossa vida e também, infelizmente, no âmbito do jornalismo e da Justiça. Muitas vezes parece mais fácil insistir no erro do que admiti-lo e buscar repará-lo. Assim como os repórteres que cobriram sem rigor ético e senso crítico a denúncia da Escola Base, embalados pela fúria da opinião pública, não é rara, entre os membros do Judiciário, a tentação de prosseguir em uma acusação menos baseada em provas do que em pressões midiáticas, motivações políticas ou mesmo indisposição para apurar melhor. Esse fenômeno é tão comum que mereceu até um termo específico, "visão de túnel".
A incômoda reflexão é forçosamente trazida a todos nós pelo longa sobre a Escola Base. Assim como a reputação de inocentes foi destruída pelo julgamento apressado de repórteres, nossos presídios colecionam histórias inaceitáveis de pessoas que passaram pela pior privação possível nessa vida - a prisão - sem ter cometido crime. Nem sempre aqueles que erram agem por má-fé. São inúmeras as possibilidades que nos levam a sermos induzidos ao erro. Mas admitir que podemos sim errar e não ter medo de voltar atrás é ato de coragem incomum, que dignifica e ensina.
Muitas vezes isso acontece, tanto no jornalismo como no sistema judiciário, pela precipitação do acusador ou pela resistência do julgador em reconhecer um erro de avaliação e mudar de ideia. É sempre fundamental manter um horizonte amplo na investigação antes de descartar hipóteses. Se errar é humano, nada pode ser mais desumano, no Judiciário, do que insistir em um erro ao ponto de mandar para a prisão uma pessoa sem que haja convicção de sua culpa.
Não é por acaso que, em todos os países, o sistema judiciário prevê instâncias de recurso a uma decisão judicial. Temos a segunda e a terceira instâncias exatamente porque errar é humano, e porque a dúvida deve sempre beneficiar o réu. Deixar de condenar um culpado pode representar uma injustiça, sem dúvidas, mas é infinitamente mais cruel tirar a liberdade de um inocente porque a Justiça hesita em reconhecer que errou e que, por exemplo, não há provas seguras que possam embasar uma condenação.
Olhar em retrospecto um erro de julgamento, ou os efeitos nocivos de uma cobertura jornalística enviesada, revisitando o passado a partir da perspectiva do inocente que foi injustamente acusado, pode ser um exercício não apenas didático mas de potencial altamente transformador.
*Dora Cavalcanti e José Luis Oliveira Lima, advogados criminalistas e membros do Innocence Project Brasil
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