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Será a vez do interesse público?

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Por Marcos Perez e Thaís Marçal
Marcos Perez e Thaís Marçal. Foto: DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL

A pandemia da COVID-19 deixará marcas eternas no cenário mundial. Caberá a sociedade global unir esforços para lidar com as questões estruturais ou conjunturais que dela emergiram, ou que, a partir dela se desnudaram.

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O fato é que devemos pensar em soluções para as agruras que agora vivemos. As lições da história estão aí, para que nos inspiremos nas medidas que foram adotadas em grandes catástrofes globais do passado (a gripe espanhola, as duas grandes guerras mundiais, as grandes crises econômicas globais: a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 ou a crise dos títulos de 2008, para dar alguns poucos exemplos), contudo enfrentamos uma realidade social e econômica talvez única, a qual potencializa a geração de respostas sistêmicas diversas.

Um legado comum da pandemia recente, que aflige povos mais ao sul ou ao norte, de leste a oeste do globo é o incremento das desigualdades. As desigualdades sociais e econômicas previamente existentes combinaram-se com a pandemia para gerar impactos específicos em vários níveis da sociedade e em vários setores econômicos. Podem ser facilmente detectados impactos na educação e no trabalho, para que nos atenhamos a dois segmentos fundamentais da vida em sociedade.

Na educação, a distância abissal no poder aquisitivo das pessoas, fez com que alguns pudessem ter seu ensino adaptado à modalidade remota (não sem impactos negativos), enquanto outros muitos, seguramente a maioria, tiveram simplesmente seu ciclo educacional interrompido. A possibilidade de migração para o ensino virtual não impunha somente o fornecimento de banda larga (o que a maior parte das famílias brasileiras ainda não possui) e transmissão de aulas por um computador ou telefone celular, mas a (i) adaptação da forma de ensino para o ambiente virtual de aprendizado e a (ii) estruturação das residências, as quais em muitos grandes centros urbanos e nas comunidades populares espalhadas por todo território brasileiro, não têm condição ideal para o desenvolvimento do aprendizado (notadamente por crianças do ensino infantil e fundamental). Os impactos da pandemia neste setor, como muitos educadores têm testemunhado, foram devastadores.

O mundo do trabalho também foi extremamente impactado pela pandemia. Profissões ligadas à prestação de serviços de predominância intelectual (como as profissões jurídicas; as do setor de comunicação; auditorias e consultorias especializadas) tiveram suas atividades remotas incrementadas até o limite do insuportável. Passa-se a falar no "direito de desligar", em burnout de rede, etc.. Os conceitos de jornada intermitente e horas extras foram ressignificados. O espaço físico e psicológico que distanciava o trabalho e a casa das pessoas definitivamente se rompeu. Ainda no período atual, com a tendência de arrefecimento da pandemia, percebe-se um viés favorável ao trabalho híbrido, como forma de extrair ganhos advindos da conjunção de ambos os regimes. Enquanto isso, fruto mais uma vez da mistura entre desigualdade e pandemia, a maior parte das profissões sofrem com baixa de demanda de profissionais, muitos profissionais que perderam seus empregos na indústria, no comércio ou no setor de serviços, migraram para o trabalho informal, ou para atuar por conta própria como entregadores ou motoristas de aplicativos. Ademais, a redução do padrão econômico de vida dos trabalhadores inseridos nessa conjuntura vem se reduzindo o que tende a produzir uma maior oneração dos sistemas de assistência social, previdência e saúde do Estado, já muito combalidos em termos financeiros.

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Como sairemos dessa? Difícil que o conhecimento jurídico gere, por si só, soluções para esses problemas. Mas essa constatação já é um bom início de conversa. Os estudiosos, os empresários, os trabalhadores, a sociedade civil, todos devem externar sua visão, na perspectiva de construção de políticas públicas específicas para os setores impactados pela pandemia. E, nesse ponto, no arranjo dessas forças e visões, o Estado e o Direito do Estado têm papeis a desempenhar.

Repensar e atualizar políticas de educação integral, como as que o Rio de Janeiro teve a partir da implantação dos CIEP's pode ser uma solução para tentar salvar uma geração de crianças e adolescentes que tiveram seus estudos devastadoramente impactados pela pandemia. Fomentar setores econômicos capazes de reabsorver a mão de obra não especializada que migrou para a economia informal, mas também estimular de forma planejada o empreendedorismo e o potencial inovador de muitas pessoas que passaram a se virar sozinhas e que estão a demandar apoio por vezes econômico, por vezes técnico, para que mobilizem todo o potencial que demonstraram ter com vistas a um efetivo crescimento da renda, parece outra solução possível a se cogitar.

Os EUA chegaram a cogitar e, em parte estão a implementar, um novo "New Deal" com investimentos pesados em infraestrutura. É possível que essa fórmula, com as devidas adaptações, também nos sirva. No ambiente econômico brasileiro convivemos com maiores restrições fiscais que nos EUA, o que impõe buscar fontes financeiras privadas para boa parte dos investimentos. Além disso, há desafios a superar no ambiente regulatório, cheio de riscos e de armadilhas para o capital privado, dos quais são evidências o extenso número de contratos suspensos e judicializados, obras paradas, entre outras deformidades, que nos levaram a inventar "relicitações", "bandas de demanda", "gatilhos", entre outras jaboticabas regulatórias, que se revelaram disfuncionais e de pouca eficiência.

Mas o importante, e essa nos parece a principal contribuição que o direito público tem a dar, é que essas políticas não resultem do nada, ou das ideias malucas, ou mesmo geniais, de um governante insone, autointitulado defensor dos interesses do povo. O essencial para o direito atual é que essas decisões resultem de processos de ponderação de interesses, processo de oitiva dos agentes econômicos e sociais e de estudos técnicos e evidências científicas, que tentem apontar o custo-benefício e os impactos sociais, econômicos e ambientais das medidas propostas.

Em especial no momento transição atual, parece fundamental que reflitamos com certo grau de urgência nessa agenda. Claro que os suspeitos de sempre reclamarão sobre a ineficiência em se promover esse grande contraditório público sobre o nosso destino, sobre o futuro do país. Uns sob o pálio de que as eleições já conferiram legitimidade suficiente aos governantes para levar à frente essa agenda, outros sob o manto da brevidade, a reclamar que processos de participação levam tempo, tempo que os brasileiros talvez não tenham.

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Tudo isso é verdade e ao mesmo tempo não é. Temos um governo legitimado para, em nosso nome governar, sim, temos urgência, idem. O que não temos é pressa em fazer o que não nos convêm, pressa em atender o interesse de poucos em desfavor do interesse geral, legitimidade para governar mal e autoritariamente. Não temos licença para errar por conta de nosso histórico viés autoritário. Disso já estamos fartos. Encerramos um ciclo de quatro anos, que nos pareceram décadas, dessa receita autoritária e ignorante. Agora basta!

*Marcos Perez, professor associado de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Livre-docente, Doutor e Mestre pela USP. Advogado

*Thaís Marçal, secretária-geral da Comissão de Assuntos Regulatórios do Conselho Federal da OAB. Presidente da Comissão de Estudos em Improbidade Administrativa da OABRJ. Mestre pela UERJ. Advogada

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