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Opinião | Seria a ‘desinformação’ uma vantagem?

Em “nosso tempo” a responsabilidade informativa transfere-se aos indivíduos. Nesses últimos, passa a recair a escolha direta da narrativa que consomem. É neste ponto que a opção individual da escolha consciente é exponencialmente instigada pelo direcionamento algorítmico, que apenas confirma preceitos pré-existentes

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convidado
Por Fernanda Villela
Atualização:

A data de 13 de julho de 2024 tornou-se emblemática. Eternamente, esse dia remeterá às notícias sobre o tiroteio que teve como alvo o ex-presidente Trump. Eventos como esse geram buscas intensas por informações que esclareçam o ocorrido. A tendência é a célere e massiva publicação, em regra realizada por fontes não confiáveis, de notícias especulativas que atendam a essa imensa demanda que visa confirmar visões políticas e trazer sentido à tragédia. A obtenção de respostas e de evidências que comprovem o ocorrido, no entanto, não é imediata. O gap que representa esse período de apuração é terreno fértil para a disseminação de notícias inverídicas e teorias da conspiração. Nesse ínterim, não há diferença do que é verídico versus mera especulação, ao menos até os pronunciamentos oficiais ou a conclusão das investigações.

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Esse “vácuo informacional que representa a ausência de informações oficiais desencadeia um ponto de vista antagônico e uma interessante conclusão: de que o conceito de desinformação pode ser “positivo”. Desde os primórdios da imprensa de comunicação em massa no século XIX, notícias abordam para além de um viés puramente esclarecedor. Honoré de Balzác, ao escrever o livro “Ilusões Perdidas”[1], ilustra brilhantemente o conceito. Em sua obra, Balzác não só descreve, mas demonstra que fake news surgem e se desenvolvem como frutos dos meios de comunicação. O cerne do argumento que “desafia” a pura negatividade das “fake news” está justamente atrelado às entrelinhas de Balzác. Para justificar tal entendimento, não é necessária remissão ao período balzaquiano ou a épocas demasiadamente remotas, relembrarmos da infância vivida nos anos 90 é suficiente.

Quando assistíamos à televisão ou nos informávamos em jornais e revistas, eram ínfimas as alternativas de busca nos anos 90. Conscientemente, a decisão de qual seria o conteúdo consumido pelo público era delegada aos editoriais. Os fatos repassados às massas eram tidos como verdades absolutas, ao menos por grande parte da audiência. Éramos dotados, até então (e, em certo ponto, ainda o somos), de um limitado poder de questionamento. Nosso discernimento à época não nos permitia nem mesmo identificarmos fake news. O conceito nos era desconhecido. No documentário da BBC News denominado “Beyond Citzen Kane”, lançado em 1993 e proibido no Brasil, a hegemonia de uma mídia com o alcance de 99,9% da população e audiência de 79% do país torna-se inegável. E nisso se traduz o fenômeno que ocorre durante os “vácuos informacionais”: a ausência de informações confiáveis impede qualquer tipo de seleção. Como observado no fenômeno da proliferação imediata de notícias sobre o atentado ao Trump, na lacuna de pronunciamentos oficiais, é objetivamente impraticável a triagem das notícias que se enquadrariam como fake news. Tudo é tido como verdadeiro. Superado esse “vácuo informacional” a seleção torna-se novamente possível.

O período que precede a divulgação de informações oficiais é comparável ao exemplo dos anos 90. Logo, o fato isolado de uma alta porcentagem de pessoas atualmente ser capaz de concluir que fake news representam fake news denota uma vantagem e liberdade informativas sem precedentes. Paradoxalmente, portanto, é inegável o benefício da posição de julgamento que nos é apresentada e permitida a partir das diferentes fontes de conteúdo disponíveis. Em “nosso tempo” a responsabilidade informativa transfere-se aos indivíduos. Nesses últimos, passa a recair a escolha direta da narrativa que consomem. É neste ponto que a opção individual da escolha consciente é exponencialmente instigada pelo direcionamento algorítmico, que apenas confirma preceitos pré-existentes. A influência e a bipolaridade de recomendações baseadas em predileções identificadas pelos sistemas que as geram são inegáveis. Uma pesquisa do Massachusetts Institute of Technology de 2018 demonstrou que fake news tendem a ganhar proporções de forma mais célere e ampla do que informações comprovadamente verdadeiras[2][3]. O mundo testemunhou as inúmeras, e claramente prejudiciais, consequências desse fenômeno. Isso é indiscutível.

Ainda assim, a remoção de conteúdo pautada em ordem judicial, por exemplo, é possibilidade consolidada pelo Marco Civil da Internet. Determinações complementares à remoção de URLs e que, inclusive, extinguem a prerrogativa da ordem judicial, discutem a responsabilidade dos provedores de aplicação e a violação de direitos, estão em pauta no Supremo Tribunal Federal por meio do Recurso Extraordinário 1.037.396, do Recurso Extraordinário 1.057.258 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 403. Iniciativas como a do Tribunal Superior Eleitoral, que recentemente atualizou, por meio da Resolução nº 23.732/2024, a Resolução nº 23.610/2019 sobre propagandas eleitorais para trazer mais regras sobre a veiculação de conteúdo período de campanha eleitoral, e adotou o Sistema de Alertas de Desinformação Eleitoral – SIADE, que gera alertas às plataformas digitais quando apontados fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados capazes de impactar a integridade do processo eleitoral, são inéditas. Somam-se às referidas iniciativas a moderação e remoção de conteúdo realizada pelas próprias plataformas, com contornos extremamente complexos e bem delineados a partir de normativos como o Digital Services Act (DSA)[4]. Com abordagem similar, o UK Online Safety Act de 2023, tem o propósito de combater atividades ilegais por meio de obrigações relacionadas à moderação e a remoção de conteúdo.

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No Brasil, mecanismos inspirados nos estabelecidos pelos normativos europeus foram propostos no Projeto de Lei nº 2630/2020, como a obrigação das plataformas em elaborar “relatórios de avaliação de risco sistêmico e transparência”. O PL 2630/2020 ou “PL das Fake News”, no entanto, devido às controvérsias e críticas em torno do tema, não obteve quórum favorável para votação e foi engavetado em abril de 2024. Apesar do engavetamento, foi criado um grupo de trabalho com a atribuição de concluir as análises da matéria. O marco propulsor no ordenamento brasileiro para o combate das fake news foi a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News instaurada em setembro de 2019 e encerrada em dezembro de 2022[5]. Dentre as conclusões apresentadas no relatório, vale ressaltar o modelo híbrido de financiamento das fake news. O modelo híbrido decorre da monetização de conteúdos, de doações e de financiamentos endossado por figuras ocultas. As abordagens do relatório desencadearam medidas relevantes de combate às fake news, como a proibição da monetização de canais de titulares de cargos eletivos na Câmara e no Senado Federal.

Nunca na história tivemos ao nosso alcance tantos mecanismos para assegurar a imparcialidade e o compromisso com os fatos. Uma pesquisa de junho de 2024 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) envolvendo 21 países apurou a capacidade dos cidadãos de diferenciarem notícias falsas das verdadeiras. Em média, foi constatado que somente em 60% dos casos notícias falsas são identificadas corretamente, sendo que o Brasil foi o país com pior desempenho, com pontuação de 54%. Essa conclusão leva à seguinte indagação: por que mesmo com as vastas possibilidades e a disponibilização de tantos meios e instrumentos que capacitam a checagem de notícias, ainda permanecemos “desinformados”? Mais do que isso: seria possível incitarmos e promovermos um consumo consciente de conteúdo?

O livro de Albert Wenger “The World After Capital” apresenta interessantes proposições para mitigar o problema. Wenger argumenta que vivemos na chamada “Era do Conhecimento” na qual a escassez não é mais de capital, mas de atenção. Em sendo os indivíduos, então, os responsáveis pelo consumo consciente de informações, Wenger divide a capacidade de seleção em: coletiva, aquela refletida em legislações; e individual, que demanda certa autorregulação. Progredimos e estamos em constante evolução no que tange ao desenvolvimento de sistemas de controle coletivo (normas, leis e regulamentações). Soluções com o propósito central de incitar a autorregulação, todavia, quase não são abordadas, tampouco discutidas. A criticidade dos eventos desencadeados a partir de fake news demonstra que controles de moderação e remoção de conteúdo, mesmo que pautados na transparência informacional, têm quase nenhuma projeção prática. Afinal, é ao individuo a quem compete a decisão do que consumir. A tendência dos seres humanos de buscarem vieses de confirmação é evolucional. Nosso cérebro poupa energia e otimiza funções ao processar informações que confirmem fatos tidos como certos[6]. A recente disseminação de fake news explora esses vieses cognitivos e emocionais dos nossos cérebros, resultando em manipulações em escala. Mas como evitá-las?

Uma proposta a ser considerada: determinada ferramenta, ao disponibilizar conteúdo online, apresentaria obrigatoriamente ao usuário informações complementares e de teor oposto. Um indivíduo, portanto, teria facilmente ao seu alcance a opção de consultar ativamente para além de suas fontes habituais. A diminuição da barreira de acesso ou mesmo a adoção de algoritmos híbridos, desenvolvidos de forma proposital para sugerir argumentações contrárias às predileções identificadas, poderia auxiliar no desenvolvimento de novos vieses informativos, até então impensáveis por aquele usuário. Isso desencadearia análises e pensamentos críticos.

Fundamentalmente, na Era do Conhecimento um esforço constante é inevitável para que um pensamento crítico seja alcançado. E isso só é possível por meio da ponderação de visões e pontos de vista antagônicos que capacitem análises coerentes, embasadas em fatos e, mais do que isso, deliberadamente racionalizadas. A “regulação coletiva”, que já ocorre de forma ativa, deve considerar a rapidez e o volume da disseminação de informações. Sua atuação, contudo, deve ser realizada em conjunto e com o propósito de fomentar a “autorregulação” individual. Afinal, é a autorregulação que está no cerne da liberdade psicológica de escolher sobre “o que acreditar”. Não queremos, nem devemos pretender, que nossas possibilidades de escolha sejam reduzidas ou, ainda, retiradas por completo. É este o ponto mais complexo e que devemos levar continuamente como autocrítica. Talvez devêssemos “tomar as rédeas” e nos conscientizarmos diariamente dos nossos vieses para nos autorregularmos sobre o que consumimos.

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Lembremos: a atenção é a escassez desta época. Assim, só uma autorregulação eficaz gerará incentivos suficientemente impactantes e capazes de promover mudanças relevantes e efetivas. E os únicos beneficiados por essa escolha perene seriamos nós. A sociedade.

[1] Publicado entre os anos de 1837 até 1843

[2] Vosoughi, S., Roy, D., & Aral, S. (2018). The spread of true and false news online. Vide: https://www.science.org/doi/epdf/10.1126/science.aap9559

[3] Wenger, Albert. The World After Capital (2021). Vide: https://worldaftercapital.gitbook.io/worldaftercapital/~gitbook/pdf

[4] Aprovado em outubro de 2022 pelo Parlamento Europeu, sendo que em 2023, as obrigações passaram a ser aplicáveis aos VLOPS e VLOSEs, e, em fevereiro de 2024, as regras passaram a valer também para as demais plataformas. Vide https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A32022R2065

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[5] O objetivo da CPMI era investigar “os ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e o debate público; a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições de 2018; a prática de cyberbullying sobre os usuários mais vulneráveis da rede de computadores, bem como sobre agentes públicos; e o aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio”. Vide: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2292

[6] Kahneman, Daniel (2011). Thinking, Fast and Slow.

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Fernanda Villela
Advogada de Blockchain e Inovação, Proteção de Dados e Cybersecurity e de Compliance. Mestrado pela Universidade de Roma – La Sapienza e LL.M pela Universidade de Chicago. Foto: Arquivo pessoal
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