Em 2015, o STF iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, que trata, em resumo, da descriminalização ou não da posse de drogas para consumo pessoal no país. Até o momento, votaram a favor da descriminalização da posse exclusiva de maconha para consumo pessoal no país, os Ministros Edson Facchin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e o Ministro Relator Gilmar Mendes. Os Ministros Cristiano Zanin e André Mendonça votaram pela constitucionalidade do crime de porte de drogas para consumo pessoal.
De acordo com a maioria de votos até o momento consolidada, não haverá legalização de todas as drogas, mas apenas da posse de maconha para consumo pessoal. Para o STF tal conduta seria mero ilícito administrativo, desde que observada determinada quantidade. Do mesmo modo, o STF pretende estabelecer critério objetivo para auxiliar os policiais e integrantes do Sistema de Justiça a diferenciar o usuário do traficante. Alegou-se que a ausência de critério objetivo na legislação antidrogas conduz à interpretação de que o “homem negro e pobre”, que porta 10 gramas de maconha é traficante e sujeito à prisão, enquanto o “homem branco e de bairro nobre” que porta 100 gramas da mesma droga é considerado usuário e liberado. Logo, o que estaria em jogo até o momento para essa maioria formada no STF, seria evitar a aplicação desigual da Lei Antidrogas, em razão da cor e das condições econômicas e sociais das pessoas.
Mas o que realmente está em julgamento? Como entender o tema de forma abrangente?
A compreensão adequada do problema pressupõe a análise dos argumentos trazidos pelos Ministros do STF no julgamento; o estudo das normas vigentes e as consequências práticas daquilo que está posto em debate.
O que diz a lei? Existe pena de prisão para posse destinada ao consumo próprio no Brasil?
O crime de posse de drogas para consumo pessoal está previsto no artigo 28, da Lei n. 11.343/06, que estabelece que “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.”
Portanto, desde 2006, já não mais existe pena de prisão para usuários de drogas no país.
A lei apresenta critérios de diferenciação entre tráfico e usuários?
Sim. O §2º do artigo 28, da Lei n. 11.343/06, de forma clara, estabelece: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
Assim, não é verdadeiro o argumento de que houve aumento de prisões de usuários de maconha e que a lei não diferencia as figuras do traficante e do usuário de drogas. Tais afirmações não procedem.
A quantidade de drogas é apenas um dos critérios estabelecidos pela lei penal para que seja realizada a referida diferenciação, mas também são considerados “o local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
Ao contrário das afirmações de parte dos Ministros do STF, “a cor e as condições econômicas e sociais”, do usuário ou do traficante são elementos circunstanciais indiferentes sob o aspecto jurídico e não possuem qualquer relevância prática. Aliás, valer-se desse tipo de argumentação é o mesmo que imputar, não apenas a todas as polícias do Brasil, mas também a todo o Sistema de Justiça, a predisposição de agir de forma preconceituosa e discriminatória, o que, em última análise, significaria criminalizar a própria atividade jurisdicional. Tal argumento também não se sustenta como fundamento, salvo como mera impressão pessoal dos Ministros.
O que dizem os dados oficiais a respeito do consumo de maconha no Brasil?
O 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, elaborado entre maio e outubro de 2015 pela FIOCRUZ (1), considerado o mais completo levantamento sobre drogas já realizados em território nacional, revelou que a substância ilícita mais consumida no Brasil é justamente a maconha: 7,7% dos brasileiros de 12 a 65 anos já a usaram ao menos uma vez na vida. O estudo revelou que 3,2% dos brasileiros usaram substâncias ilícitas nos 12 meses anteriores à pesquisa, o que equivale a 4,9 milhões de pessoas.
Se a lei que prevê o crime de posse para consumo pessoal é de 2006, por que somente agora, quase 20 anos depois, o STF está apreciando se ela é constitucional?
Na verdade, esse tema já foi objeto de apreciação pelo STF em diversas oportunidades anteriores e nunca se decidiu pela inconstitucionalidade do crime de posse de drogas para consumo pessoal. Em 13/02/2007, por ocasião do julgamento da questão de ordem no REXT 430105-9 (RJ), a Corte, por meio de voto do Ministro Sepúlveda Pertence considerou ter havido “despenalização”, mas não “descriminalização” do porte de drogas para uso próprio. Em 15 de fevereiro de 2011, ao julgar o HC n.102.940 (ES), a 1a Turma do STF, sendo Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, decidiu que “no caso sob exame, não há falar em ausência de periculosidade social da ação, uma vez que o delito de porte de entorpecente é crime de perigo presumido”.
Se o processo em julgamento pelo STF envolve caso individual, por qual razão a decisão deste caso é tão relevante para o país?
É que como o STF atribuiu ao processo o caráter de “repercussão geral”, os efeitos da decisão serão vinculantes a todos os demais casos em todo o Brasil, ou seja, a decisão servirá como lei em todo o país. Ao descriminalizar a posse de maconha para consumo pessoal, o STF estará liberando geral seu consumo em qualquer lugar público ou privado no país. Sim. Isso mesmo: o consumo de maconha, desde que o usuário possua menos que 60g (conforme a decisão por enquanto formada no STF), estará autorizado em qualquer local público ou privado.
Também é grave o fato de que o STF pretende se substituir ao legislador brasileiro, definindo quantidade de 60g ou 6 plantas fêmeas de maconha, hipótese que será considerada posse para consumo pessoal, ou seja, tal cidadão será considerado usuário, mesmo não tendo o legislador previsto tal quantitativo na norma penal.
Seria possível o STF considerar a posse de drogas para consumo pessoal como mero ilícito administrativo, nos moldes da legislação portuguesa?
Não. Isso porque a Lei nº 30/2000 (legislação portuguesa), prevê o porte de drogas como ilícito administrativo; define os órgãos responsáveis para apreciação da respectiva demanda (Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência – CDTs); e prevê também sanções a serem aplicadas (praticamente as mesmas estabelecidas no artigo 28 da Lei 11.343/06).
No entanto, no Brasil não há qualquer previsão legislativa, um Código ou Estatuto que estabeleça a mesma estrutura administrativa para atender a demanda da posse e porte de drogas para consumo pessoal.
Mas a legislação que proíbe o consumo de cigarro não se aplica ao consumo de maconha em locais públicos e privados?
Não. Se a decisão de descriminalização da posse de maconha para consumo pessoal se confirmar, o STF colocará a maconha em patamar menos nocivo do que o próprio tabaco (cigarro). Assim ocorre, porque o cigarro possui disciplina em lei federal (n. 12.546/2011), além de regulamentos próprios, que vedam seu consumo em locais de uso coletivo, públicos ou privados. Já a posse de maconha para consumo pessoal somente é vedada pela Lei n. 11.343/06 que considera tal conduta um crime. Não há nenhum outro Código ou norma legal prevendo quais são os locais onde pode ser consumida maconha; a quantidade que pode ser consumida; quais são as hipóteses de infrações administrativas; quais as sanções administrativas para o descumprimento; quais órgãos são competentes para fiscalização, como ocorre em outros países.
Não estaria o STF se inspirando nos EUA, país no qual houve legalização do consumo de maconha e solução do problema relativo ao tráfico ilícito?
Nos EUA a maconha é legalizada para uso medicinal em quase todo o país. Em 23 estados é liberada também para consumo recreativo. Ainda assim, houve aumento do consumo de maconha nos últimos anos, conforme estudos e pesquisas elaboradas sobre o tema (2). Estudo realizado no ano de 2021 aponta que o percentual de usuários foi o maior registrado nos EUA desde 1988. Dois em cada cinco jovens na faixa etária de 19 a 30 anos fizeram uso ocasional ou regular de cannabis no país (3). A população norte-americana tem usado menos cigarro, porém consumido mais maconha (4). E o mais importante: a legalização do uso de maconha gerou aumento de consumo na população mais jovem dos EUA e não eliminou o tráfico ilícito de drogas naquele país.
Mas o consumo recreativo de maconha não é considerado inofensivo à saúde? O que diz a medicina especializada a respeito?
O médico psiquiatra Valentim Gentil do Departamento de Psiquiatria da USP afirma que “a interação entre predisposição genética e demais fatores físicos e emocionais que resultam na constituição do indivíduo, o início precoce do uso, a frequência do consumo e o alto teor de THC pode causar – e não só desencadear – psicoses, antecipar a idade do primeiro surto e levar a persistência da psicose mesmo após a interrupção do uso da droga. Isso foi comprovado por 10 estudos, em oito países (5).” “A maconha é a droga ilícita mais utilizada na maioria dos países do mundo. Dependendo da dose, pode levar alguns indivíduos a desenvolver sintomas psiquiátricos e alterações cognitivas transitórias. O uso recreativo da maconha, dependendo da dose, da frequência e da precocidade do uso, pode induzir alterações cognitivas, facilitar quadros psiquiátricos e produzir dependência em usuários vulneráveis”(6).
O STF poderia evitar a descriminalização do porte de maconha?
Sim. A definição a respeito da legalização ou não de drogas se refere à atividade legislativa, conforme expresso no artigo 22, inciso I, e artigo 48 da CF.
Ademais, em relação ao tema, em 1994, o Tribunal Constitucional Federal Alemão se debruçou sobre a questão de descriminalização da maconha. Naquela oportunidade, entendeu-se que a decisão do legislador pela criminalização teria que ser aceita, “pois o legislador tem uma prerrogativa de avaliação e decisão para a escolha entre diversos caminhos potencialmente adequados para alcançar um objetivo legal”. (7)
Desta forma, parece evidente que a decisão por criminalizar ou não o porte de drogas é matéria afeta exclusivamente ao parlamento.
Quais serão as consequências jurídicas da descriminalização da posse de maconha para consumo pessoal?
A melhor resposta pode ser fornecida com um exemplo. Imagine-se que 3 mil pessoas resolvam, cada qual, portar quantidade autorizada pelo STF (menos que 60g de maconha que não será mais crime) e decidam comparecer na praça pública situada em frente ao prédio da Corte em Brasília, acendendo 3 mil cigarros de maconha ao mesmo tempo, em frente ao prédio do STF em pleno dia de julgamento? O que poderão fazer os Ministros? Qual órgão poderá ser acionado para impedir o ato?
Quais serão as consequências práticas da decisão do STF?
A se confirmar a decisão de descriminalização, no exemplo citado, nada poderá ser feito, a não ser os Ministros e toda a sociedade assistir aos usuários de maconha em plena praça pública (que pode ser a praça pública de qualquer cidade do país), gozando do seu direito constitucional de consumo pessoal de até 60g de maconha, conferido pelo próprio STF.
Afinal, a polícia não poderá mais ser acionada porque o fato não constituirá mais crime. E também não poderão ser acionados quaisquer outros órgãos públicos, pois o fato não constituirá ilícito administrativo algum, por falta de previsão legal. O exemplo apresentado já sugere o caos que poderá ser gerado por conta da decisão que o STF está construindo.
Repise-se que, como não há nenhum Código, Estatuto ou legislação própria a respeito da legalização da posse para consumo; locais específicos destinados a esse uso; quantidade a ser consumida por indivíduo (tal qual ocorre em outros países); a “legalização da posse para consumo pessoal pela via judicial (leia-se, pelo STF)” não resolverá outro problema que será o de que os usuários, recreativos e/ou abusivos (dependentes) não terão locais oficiais para aquisição e consumo. Em outras palavras: terão de continuar adquirindo maconha ilegalmente com traficantes de drogas, o que revela absoluto contrassenso lógico-jurídico.
Em que medida a decisão do STF pode gerar efeitos no tráfico ilícito de drogas?
As perspicazes facções criminosas poderão facilmente emitir um “salve” para que seus membros (centena ou milhares de adolescentes e jovens adultos) – aqueles que cuidam de “biqueiras” e “lojas” do tráfico de drogas – para que passem a porcionar a maconha em invólucros com peso não superior a 60g, inviabilizando qualquer ação policial e aumentando ainda mais a distribuição de drogas ilícitas no país. Traficantes poderão caminhar livremente em qualquer recinto público ou privado do país em poder de quantidade não superior a 60g de maconha. Afinal, não será mais crime ou ilícito algum. Tais drogas sequer poderão ser apreendidas e tomadas do possuidor, porque não tipificadas como crime ou ilícito administrativo em nenhuma lei do país.
A compreensão de que o tráfico do “atacado” (em grandes remessas) e do “varejo” (nas inúmeras “bocas de fumo” espalhadas nas esquinas de todas as cidades brasileiras) são fenômenos distintos revela pouco conhecimento da realidade. Por simples lógica econômica, tanto o tráfico do “atacado” quanto o do “varejo” são monopolizados pelas grandes facções criminosas, que não diferenciam os lucros advindos de um e de outro; ambos são receitas que perfazem o mesmo “caixa financeiro”, servem para fomentar mais aquisição e distribuição de drogas, e para maior fortalecimento armamentício de seus integrantes, o que lhes confere poder perante a comunidade em que se impõem.
A afirmação de que a “guerra às drogas foi perdida” carrega um olhar de mundo assemelhado ao de Poliana, a acreditar que cabe ao Sistema de Justiça “vencer” o crime”. O crime existe desde que o mundo é mundo, ou seja, desde que os seres humanos começaram a interagir entre si; e continuará a existir enquanto houver essa mesma interação, pois se trata de algo inato à dessemelhança existente entre as pessoas. Cumpre ao Sistema de Justiça tão somente atuar para que sejam garantidas as condições mínimas de convivência harmônica dentro de uma sociedade.
E não há dúvidas de que o tráfico ilícito de drogas, com a criação de um “Estado Paralelo”, a estabelecer regras de conduta a serem cumpridas pela “força”, é o maior entrave atualmente à convivência harmônica e pacífica na sociedade, tanto que constitucionalmente alçado ao mesmo patamar dos crimes hediondos.
Conclusões
1) O STF já apreciou anteriormente a constitucionalidade do crime previsto no artigo 28, da Lei n. 11.343/06, que deve ser mantida pela atual composição, por se tratar de crime de perigo abstrato e porque é o único dispositivo legal a tratar da vedação do consumo de drogas no país.
2) O STF deve deixar a critério do Congresso Nacional (Poder Legislativo e com competência para tanto) a regulamentação do tema, mediante a elaboração e discussão de texto legal que venha a disciplinar a posse de drogas para consumo pessoal (incluindo a maconha) e toda a regulamentação específica.(1) BASTOS, Francisco Inácio Pinkusfeld Monteiro et al. (Org.). III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ICICT, 2017.
(3) https://www.poder360.com.br/internacional/2-em-cada-5-jovens-nos-eua-usam-maconha-aponta-estudo/
(5) https://www.uniad.org.br/galeria-de-videos/prof-dr-valentin-gentil-filho-fala-sobre-a-maconha/
(6) ZUARDI, Antonio Waldo; CRIPPA, José Alexandre de Souza. Maconha, in Dependência Química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Coord: DIEHL, Alessandra; CORDEIRO, Daniel Cruz; LARANJEIRA, Ronaldo. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 161.
(7) MACIEL NETO, Aluisio Antonio. Liberdades, Garantias e Direitos Sociais. Curitiba: Editora Juruá, 2020, p.193.
Convidados deste artigo
As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.