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Opinião|STF definirá nesta quarta-feira as formas de dissolução conjugal

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convidado
Por Regina Beatriz Tavares da Silva*

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará, nesta quarta-feira (25 de outubro), o Recurso Extraordinário (RE) 1.167.478/RJ, cujo Relator é o Ministro Luiz Fux. O Tema 1.053 versa sobre a subsistência da separação como instituto autônomo. A outra parte do tema é referente à permanência ou não da separação como requisito para o divórcio após a promulgação da EC 66/10.

Regina Beatriz Tavares da Silva Foto: Divulgação

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Na parte do tema atinente à permanência ou não da separação como requisito do divórcio, não pode remanescer dúvida: desde a EC 66/2010 que introduziu o divórcio direto, no artigo 226, § 6º da Lei Maior, não há mais requisitos para a dissolução do vínculo conjugal. Os prazos que antes existiam de um ano de separação judicial e extrajudicial ou de separação de fato por dois anos não vigoram mais. O divórcio foi facilitado, o que já era um anseio social. A separação também foi facilitada, já que não tem mais o prazo de um ano de distanciamento conjugal para sua decretação por pedido unilateral. Até aí, nenhum problema, muito ao contrário.

Mas, como Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), que atua como amicus curiae nesse processo, e como advogada familiarista, a preocupação com esse julgamento refere-se à subsistência da separação como instituto autônomo. A depender do entendimento do STF, ocorrerão graves violações aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal (CF).

Porém, uma corrente de pensamento passou a interpretar que a EC 66/2010 teria eliminado o próprio instituto da separação e não só a sua existência como requisito do divórcio. Se esta interpretação for aceita pelo STF, ocorrerão muitas violações à Constituição Federal (CF), aos direitos fundamentais ali previstos, como se verá a seguir.

Direito fundamental à liberdade no exercício de direitos em razão da crença

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Exatamente por ser o Brasil um Estado laico, em nosso país é inviolável a liberdade de crença e de exercício de direitos em razão da crença (CF, artigo 5º, inciso VIII.

Em várias correntes evangélicas e no catolicismo, o vínculo conjugal é indissolúvel, de modo que somente a separação é permitida a quem professa essas religiões. Se desaparecer o instituto da separação, restaria apenas o divórcio como forma de dissolução conjugal. Impedidos de se divorciarem por sua crença, esses religiosos teriam duas opções: viver sob o estado civil de casados e na situação irregular de separados de fato perante o Estado ou divorciar-se em desrespeito aos seus preceitos religiosos.

Observe-se que a separação somente de fato não modifica o estado civil, não extingue por si só o regime de bens e os deveres conjugais, enquanto a separação judicial ou extrajudicial opera tudo isto, já que dissolve a sociedade conjugal (CC, artigo 1.576). A separação meramente fática cria um limbo, que efetivamente não se equipara à separação judicial ou extrajudicial.

Portanto, a interpretação que pretende eliminar o instituto da separação viola o direito fundamental à liberdade de regularização do estado civil, por ser a única forma de dissolução conjugal admitida por quem não pode se divorciar em razão de sua crença.

Direito fundamental à liberdade

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O segundo direito violado pela interpretação segundo a qual deveria ser declarada a inconstitucionalidade das normas sobre a separação judicial é o direito à liberdade (CF, artigo 5º, caput).

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Há casais, independentemente do credo, que, diante de crise conjugal, não pretendem a dissolução completa do vínculo conjugal e necessitam de “um tempo” para refletir sobre o divórcio. Desse modo, optam pela separação judicial ou extrajudicial, podendo restabelecer facilmente a sociedade conjugal a qualquer tempo (CC, artigo 1.577).

Note-se que o Conselho Nacional de Justiça já se pronunciou sobre o tema e indeferiu o Pedido de Providências 0005060-32.2010.2.00.0000 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), decidindo que o instituto da separação permanece no ordenamento jurídico brasileiro após a EC 66/10.

O Código de Processo Civil, aprovado no ano de 2015, após amplo debate, adotou a separação como instituto procedimental autônomo, o que é mais um reforço relevante à sua recepção pela EC 66/10.

Direitos fundamentais à integridade física e psíquica e à honra

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Outros direitos seriam violados pela supressão do instituto da separação: a integridade física e psíquica e a honra, que se encontram na cláusula geral de tutela da personalidade - a dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º III).

Isso porque é nas normas do Código Civil sobre a separação judicial que estão estabelecidas as consequências do descumprimento dos deveres conjugais: perda do direito à pensão alimentícia plena, com conservação somente dos alimentos mínimos (CC, artigo 1.704, caput e parágrafo único), e perda do direito ao uso do sobrenome conjugal, salvo as exceções expressas (CC, artigo 1.578, I, II e III). Essas sanções não foram inseridas no divórcio porque o Código Civil é do ano de 2002, quando era exigida a separação antes do divórcio e as pessoas já deveriam estar separadas e com esses assuntos resolvidos.

Assim, embora a corrente que pretende a supressão da separação alegue que o faz para defender a laicidade do Estado brasileiro, o argumento é falacioso, porque o seu intuito é a eliminação das consequências sancionatórias do descumprimento dos deveres conjugais, transformando-os em meras recomendações, já que dever sem sanção não é jurídico.

Alega-se que descabe falar em culpa nas relações de família, quando, em verdade, culpa é o descumprimento consciente de uma norma de conduta. Se deixarem de existir normas de conduta, deixaria de existir o próprio casamento. Se até a compra de um pãozinho gera deveres e direitos entre o consumidor e a padaria, obviamente que o casamento deve continuar a gerar direitos e deveres e não meras recomendações entre as pessoas que se casam.

Conforme o Código Civil, os deveres conjugais são a fidelidade, a assistência imaterial e material e o respeito (artigo 1.566). O objeto do dever de respeito reside nos direitos da personalidade do cônjuge, como a vida, a integridade física e psíquica e a honra.

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É inaceitável que, diante da tutela aos direitos da personalidade e à dignidade humana, que o cônjuge vitimado pela agressão física ou moral - como a mulher vítima de violência doméstica - ou pela infidelidade, possa ser obrigado a prestar ao agressor pensão alimentícia plena, ou seja, tudo que englobe o necessarium vitae e o necessarium personae.

Se for eliminado o instituto da separação, mulheres que sofrem violência doméstica e sustentam a casa terão de pagar pensão alimentícia ao agressor, o que importa em violação ao artigo 226, § 8º, pelo qual “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Evidente seria o incentivo à violência se o homem agredisse a mulher e ainda fizesse jus a receber dela pensão alimentícia plena.

Também inaceitável seria obrigar a pessoa do cônjuge traído a pagar alimentos plenos, que têm como parâmetro as possibilidades de quem presta a pensão e todas as necessidades de quem a recebe, da alimentação ao lazer, passando por habitação, vestuário e até mesmo educação, entre outras despesas do cônjuge infiel, como, por exemplo, tratamentos de natureza estética.

Isso equivaleria a endossar a violação à integridade física e moral de uma pessoa, por ser casada, em desacato ao princípio da dignidade da pessoa humana.

No mesmo sentido, não há como aceitar que o cônjuge que sofre essas violações seja forçado a calar-se e permitir que quem o agrediu física ou moralmente mantenha o sobrenome de sua família. Violação ao direito ao nome, e, portanto, à dignidade, esta é a consequência da interpretação que pretende a eliminação do instituto da separação.

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A supressão de sanções pelo descumprimento de dever conjugal também estimularia a poligamia, vale dizer, infirmaria o pilar do casamento que é a monogamia e levaria a grave contradição com as duas teses de Repercussão Geral recentemente firmadas sobre os Temas 526 e 529, que reconheceram a plena vigência do dever de fidelidade e, portanto, das consequências de seu inadimplemento:

“É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável” (STF, RE 883.168/SC, rel. min. DIAS TOFFOLI, j. 03/08/21).

“A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1° do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.” (STF, RE 1.045.273/SE, rel. min. ALEXANDRE DE MORAES, j. 21/12/20).

E não tem apoio o argumento de que o cônjuge que descumpre dever conjugal poderia ficar sujeito a passar fome, diante dos alimentos indispensáveis que lhe são assegurados (CC, artigo 1.704, parágrafo único) e que servem às necessidades básicas de quem não tem aptidão para o trabalho e parentes em condições de auxiliá-lo.

Mesmo que fosse possível considerar violação à privacidade o relato em processo judicial sigiloso de comportamentos do cônjuge praticados em violação aos deveres que assumiu no casamento, pelo princípio da ponderação, os direitos à honra e à integridade física e psíquica sempre deverão prevalecer.

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Ressalte-se que, no posicionamento que a ADFAS adota, a culpa não é condição da dissolução conjugal. A dissolução conjugal cumulada com o pedido de declaração do descumprimento de norma de conduta é apenas uma das opções para o cônjuge vitimado, que, pode escolhê-la ou preferir a outra espécie dissolutória, em que não haverá nenhuma consequência pelo descumprimento de dever conjugal.

Arremate final

A jurisprudência também é vasta no entendimento de que o instituto da separação permanece no ordenamento brasileiro após a EC 66/10, tanto de tribunais estaduais como do STJ.

Temos de ter presente que a manutenção do instituto da separação e de suas normas, inclusive as que estipulam sanção a quem descumpre dever conjugal aplicam-se ao divórcio, dentro do que se chama de “recriação” diante de uma emenda constitucional, como a EC 66/2010. A legislação vigente deve ser interpretada de acordo com a finalidade da norma constitucional, que é a facilitação do divórcio, o que exige a recriação desse instituto, para que possa, se for o caso, ser cumulado com o pedido de dissolução do vínculo conjugal o pedido de aplicação das sanções pelo descumprimento de dever conjugal, previstas na separação judicial pelo Código Civil, tendo em vista evitar o vazio legislativo citado pelo Ministro Luís Roberto Barroso (A Constituição e o conflito de normas no tempo. Direito constitucional intertemporal. Revista da Faculdade de Direito, v. 1, n. 3, Rio de Janeiro, UERJ, 1995, p. 204).

Como destaca o mesmo Ministro Luis Roberto Barroso, a entrada em vigor de nova norma constitucional exige um diálogo entre o novo dispositivo e a legislação que se encontra vigente no ordenamento, de modo que a interpretação constitucional é conduzida sob a inspiração de determinados princípios cardeais, que a singularizam, dando-lhe um toque de especificidade. Entre esses princípios está aquele da continuidade da ordem jurídica. Ao entrar em vigor, a EC 66/2010 deparou-se com todo um sistema legal preexistente, de modo que a nova ordem constitucional não rompe integralmente o passado (idem, obra e páginas citadas).

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Em suma, a eficácia direta da EC 66/2010 no ordenamento jurídico leva à convicção de que as regras sobre a separação, judicial e extrajudicial, tanto em relação ao instituto em si, como às sanções atinentes ao descumprimento de dever conjugal, foram recepcionadas por essa emenda, que se limitou a retirar os requisitos temporais do divórcio.

*Regina Beatriz Tavares da Silva, fundadora e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Pós-doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutora e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada e sócia-fundadora de Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados (RBTSSA)

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