O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 23, que autoridades e órgãos de investigação podem requisitar informações diretamente a provedores de internet e plataformas de redes sociais sediados no exterior, sem necessidade de passar pela Justiça estrangeira. O resultado impõe uma derrota a grandes empresas de tecnologia, como Twitter, Facebook e Telegram.
O entendimento unânime dos ministros deve facilitar as investigações sobre os atos golpistas do dia 8 de janeiro. Os protestos que deixaram rastro de destruição no Palácio do Planalto, no Congresso e no Supremo, em Brasília, foram articulados majoritariamente pelas redes sociais.
"As grandes plataformas acabaram, por omissão, colaborando com os atos do dia 8 de janeiro. A organização desses atos não teria sido possível se elas tivessem um filtro mínimo, teriam não só avisado as autoridades como cessado essa propagação", afirmou o ministro Alexandre de Moraes.
O julgamento foi iniciado em outubro e suspenso por pedido de vista (mais tempo para análise) de Moraes. Os ministros seguiram o relator Gilmar Mendes e concluíram que, quando possível, os pedidos de informação devem ser direcionados a filiais ou escritórios no Brasil para agilizar o acesso a dados necessários em investigações penais.
Essa é uma prática que já vinha sendo usada pelo ministro Alexandre de Moraes em investigações sensíveis ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados, como os inquéritos das fake news, das milícias digitas e dos atos antidemocráticos, e também pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ao chancelar o mecanismo, o plenário do STF aumenta a pressão pela entrega de dados, em meio à resistência das plataformas em bloquear perfis e expôr a comunicação dos usuários. O Telegram, por exemplo, foi multado em R$ 1,2 milhão por descumprir uma ordem judicial para bloquear a conta do deputado bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG).
A facilidade com que os usuários conseguem apagar os conteúdos publicados nas redes sociais foi um dos pontos centrais no julgamento. A exclusão das postagens não isenta as plataformas de manter os registros de acesso, mas na prática dificulta a produção de provas nos casos em que as autoridades brasileiras não conseguem contato com os provedores no exterior. Isso porque esse histórico não é conservado indefinidamente. O prazo previsto no Marco Civil da Internet é de seis meses.
"É diferente para conseguir uma quebra de sigilo bancário, os dados estão no banco, ou o compartilhamento de processos. Aqui a celeridade necessária é muito grande e a possibilidade de simplesmente ocorrer um sumiço total das provas é maior ainda", alertou o ministro Alexandre de Moraes. "Sem a obtenção da prova, não haverá responsabilização", acrescentou.
A ação julgada foi movida pela Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação (Assespro Nacional) em 2017. A entidade é representada no processo pelo escritório do ministro aposentado do STF Carlos Ayres Britto. A Assespro defendeu que o acesso judicial a dados de usuários da internet por provedores sediados no exterior deveria, necessariamente, seguir o trâmite previsto no Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal (MLAT, em inglês), assinado entre o Brasil e os Estados Unidos.
O acordo de cooperação foi firmado para facilitar investigações criminais, como a tomada de depoimentos, entrega de documentos, transferências de presos, bloqueio de bens e execução de pedidos de busca e apreensão. O texto prevê que as solicitações devem passar por uma autoridade central designada por cada país - no caso do Brasil, o Ministério da Justiça.
A Assespro argumentou que não questiona a aplicação da lei brasileira aos atos praticados no Brasil. "O que se defende é a obtenção dos meios de prova com a observância do devido processo legal previsto na própria lei brasileira. E, uma vez que os controladores dos dados pretendidos estão fora do território nacional, faz-se imperioso o uso dos mecanismos de cooperação internacional", afirmou a associação.
O Facebook acompanhou o processo como terceiro interessado. A plataforma defendeu que o MLAT é o 'procedimento correto' para obtenção de dados controlados por empresas norte-americanas e culpou as autoridades brasileiras pela falta de sucesso do acordo.
"Caso houvesse medidas simples e de fácil alcance ao DRCI (Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça), como maior divulgação de informações quanto ao uso do mecanismo de cooperação jurídica internacional, melhor treinamento das autoridades brasileiras, ou melhor uso de recursos ou capacitação (por exemplo, tradução de requisições), a quantidade de respostas exitosas aumentaria substancialmente", argumentou o Facebook.
Os ministros concluíram que o acordo é constitucional, assim como a notificação das plataformas por cartas rogatórias, mas não deve ser o único caminho para conseguir informações, sobretudo por não ser o mais 'eficiente'. Eles defenderam uma 'modernização' do procedimento de requisição de dados dos provedores.
"É estranho falar em cartas rogatórias em um momento em que por WhatsApp nós conseguimos falar com o outro lado do mundo", pontuou Moraes.
O plenário também entendeu que, por operarem no Brasil, essas empresas estão sujeitas à legislação e jurisdição brasileiras. Esse é um tema que começou a ser discutido em março do ano passado, quando o Telegram se viu obrigado a nomear um representante legal no País, escalado para atender demandas judiciais, para evitar um bloqueio iminente.
"Não importa se o grande provedor é em Dubai, na Rússia ou em Cingapura. Se a transmissão dessas informações se dá pelas antenas de telecomunicação brasileiras, está dentro da jurisdição brasileira. Não se pode esconder essas informações sob o manto de que a sede da empresa não é no Brasil. Ora, está atuando no Brasil", acrescentou Moraes.
O julgamento também foi marcado por longos debates entre os ministros, que defenderam ampliar a regulação sobre a atuação das plataformas no Brasil e as hipóteses de responsabilização das redes sociais.
"Este não é um momento de mudança de interpretação do Direito, mas de transformação do Direito para que nós não tenhamos espaços de faroeste digital com efeitos concretos na vida de todos nós", defendeu a ministra Cármen Lúcia.
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