A Constituição Federal Brasileira de 1988 respalda, conforme redação dos seus artigos 173 e 175, a criação pelo Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), de empresas públicas, sociedades de economia mistas e suas subsidiárias, exploradoras de atividade econômica ou prestadoras de serviços públicos. Tratam-se das conhecidas empresas estatais.
A polêmica quanto à criação de tais empresas ultrapassa o plano jurídico, sendo um dos mais simbólicos embaraços relacionados à intervenção do Estado na economia e na prestação dos serviços públicos, diálogo disruptivo entre os entusiastas da corrente liberal (ou neoliberal) e aqueles que defendem uma intensa intervenção do Poder Público nos mais variados setores de atividades que podem ser desempenhadas pela iniciativa privada.
Embora a Constituição haja sido promulgada em 1988, somente no ano 2016 foi editada a Lei nº 13.303, que dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. A conhecida Lei das Estatais, reproduzida no contexto efervescente da Operação Lava Jato (Petrolão) é, portanto, uma lei de abrangência nacional, não se limitando ao âmbito federal.
Ao promover expressivas e contundentes mudanças quanto à competitividade, além de agregar substanciais alterações no processo de contratação pública promovido pelas referidas empresas e suas subsidiárias, a Lei das Estatais afastou qualquer possibilidade de intervenção politiqueira em seu controle, vedando a indicação (inciso I do § 2º do art. 17 da Lei nº 13.303/2016), para o Conselho de Administração e para a diretoria, “de representante de órgão regulador ao qual a empresa pública ou a sociedade de economia mista está sujeita, de Ministro de Estado, de Secretário de Estado, de Secretário Municipal, de titular de cargo, sem vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na administração pública, de dirigente estatutário de partido político e de titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados do cargo”.
A despeito do vislumbre corretivo emplacado na legislação, ainda que quase vinte anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 16 de março de 2023, em decisão exclusivamente monocrática (perdão à proposital tautologia), da lavra do Ex-Ministro Ricardo Lewandowski, declarou a inconstitucionalidade da expressão “de Ministro de Estado, de Secretário de Estado, de Secretário Municipal, de titular de cargo, sem vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na administração pública”, constantes do inciso I do § 2° do art.17 da Lei 13.303/2016, até o definitivo da ação.
Alegando urgência no pedido de tutela provisória incidental nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.331/DF, proposta pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), emergência avistada tão somente quase sete anos após a edição da Lei das Estatais e quando já realizadas, em outras oportunidades, algumas escolhas de dirigentes nos moldes previstos pelo Congresso (e não pelo STF), a Corte Suprema inaugurou uma inconteste margem de insegurança jurídica, propiciando a eleição de membros ao arrepio do desígnio normativo.
A então urgência (encontrada depois de sete anos da publicação da Lei nº 13.303/2016) decorria, segundo fundamentação constante na decisão, da iminente data limite (30 de abril de 2023) exigida por lei para a realização de assembleias nas empresas estatais, considerando o fato de que os administradores deveriam encaminhar os documentos relacionados à pauta até o dia 30 de março.
Ultrapassado o principiante desgosto quanto à monocrática interpretação do STF – talvez já olvidada até mesmo pelas nomeações concretizadas em desconformidade com a amplamente debatida norma constante na Lei das Estatais -, o passo subsequente é, assustadoramente, mais desconfiável e provocativo, na medida em que o Conselho de Administração da Petrobrás já se adiantou ao julgamento plenário do Tribunal Supremo, considerando os termos da lei inconstitucionais.
Na prática, a vulnerabilidade interpretativa não dimana exclusivamente das monocráticas decisões da Corte Suprema, pois, fatidicamente, o Conselho de Administração da Petrobrás já se antecipou a uma ainda desconhecida decisão colegiada do mais alto órgão jurisdicional do país.
Bem-vindos à sociedade aberta dos intérpretes das estatais. Peter Häberle não se preparou para tanto!
*Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do Estado do Amapá, bacharel em Administração e sócio-fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados
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