Diante de dezenas de indígenas que lotavam o plenário, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 21, que a tese do marco temporal é inconstitucional. O placar foi de 9 votos a 2.
A decisão representa uma vitória dos povos indígenas, que há pelo menos dois anos aguardavam o STF bater o martelo, entre idas e vindas no julgamento.
O marco temporal previa que os povos indígenas só tinham direito a permanecer nas terras que já ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição. A tese foi usada pela primeira vez em 2009, no julgamento da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima.
A maioria dos ministros entendeu que o vínculo dos povos originários com o território não pode ser condicionado a uma data fixa.
“O que o Supremo está dizendo à nação é que a Constituição não admite uma demarcação temporal, porque muitos povos foram expulsos de suas terras. O direito constitucional é que eles voltem a ocupá-las”, projeto o ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo Belisário dos Santos Júnior.
Contra o marco, votaram o relator do caso, Edson Fachin, assim como os ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber. Os ministros Nunes Marques e André Mendonça votaram a favor da tese.
Direitos fundamentais
Prevaleceu no julgamento o entendimento de que o direito dos povos indígenas ao território que tradicionalmente ocupavam é um direito fundamental, previsto na Constituição, e não pode ser reduzido.
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Artigo 231 da Constituição Federal
O ministro Celso de Mello, aposentado do Supremo Tribunal Federal, afirma ao Estadão que, sem o direito ao territórios, os povos indígenas ficariam expostos ao risco ‘gravíssimo’ de desintegração cultural e de perda de sua identidade étnica.
“Não se pode examinar a questão nuclear do acesso à terra sem se reconhecer que os direitos originários dos povos indígenas sobre os espaços territoriais por eles tradicionalmente ocupados acham-se diretamente vinculados a uma específica finalidade de ordem constitucional: a proteção jurídica, social, antropológica, econômica, mística e cultural dos indígenas e de suas comunidades”, defende.
Indenizações
O julgamento tem repercussão geral, ou seja, a decisão do Supremo Tribunal Federal precisará ser seguida por todas as instâncias do Poder Judiciário. Os ministros ainda vão se reunir na próxima semana para definir a tese que servirá como baliza para os tribunais do País. Entre os pontos que ainda precisam ser definidos estão as indenizações aos proprietários expropriados nos processos de demarcação.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teme que as indenizações travem processos em curso. A Advocacia-Geral da União (AGU) argumentou junto ao STF que o impacto nos cofres públicos será ‘incalculável’. O ministro Alexandre de Moraes, que defende a proposta, rebateu no plenário e chegou a dizer que o problema no ritmo das demarcações não são as indenizações e sim a ‘vontade política’ do Congresso e da Presidência da República.
Os ministros precisam decidir, por exemplo, se a indenização obrigatória for aprovada, como será o cálculo. É preciso estabelecer se os proprietários terão direito a receber de volta apenas o valor do terreno ou também o que gastaram com eventuais benfeitorias. Outro ponto em aberto é a modalidade do pagamento, se antes ou depois da desapropriação.
“Se por um lado a indenização prévia pode inviabilizar as demarcações das terras indígenas, por outro lado, em se tratando de um processo paralelo, ficará prejudicado aquele que terá que aguardar provavelmente muitos anos para receber”, defende a advogada Lívia Bíscaro Carvalho, coordenadora da área cível no Diamantino Advogados Associados.
O advogado Bruno Costa, sócio da área de Agronegócio do Machado Meyer Advogados, explica que mesmo quem tiver ocupado terras de ‘boa-fé', terá que entregar os imóveis. A decisão, segundo ele, terá impacto direto no agronegócio.
“Em que pese a decisão ser importante para colocar um fim às incertezas tanto dos povos indígenas, quanto dos ruralistas, trouxe a certeza de que ocupantes de boa-fé, que se valem da terra para fomentar o agronegócio, irão se ver obrigados a entregar os imóveis a quem de direito”, afirma.
Embate com o Congresso
A decisão do STF enterra a tese do marco temporal na Corte, mas não encerra a batalha institucional sobre o assunto. Isso porque, paralelamente ao julgamento, o Congresso também vota uma um projeto sobre o tema.
Demanda da bancada ruralista, o projeto de lei 490/2007, conhecido como PL do Marco Temporal, já foi aprovado em maio pela Câmara dos Deputados, sob protesto de parlamentares de esquerda e movimentos indígenas.
A proposta atualmente está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Em votação desta quarta-feira, 20, gerou discussões entre os senadores, que mandaram recado ao STF; ‘não somos menores que ministros’.
No entanto, especialistas ouvidos pelo Estadão avaliam que, com a decisão do STF, o projeto de lei será colocado em xeque. O PL trata de outros temas, que podem seguir tramitando, mas o trecho sobre o marco temporal precisará ser revisto, segundo analistas.
Se os parlamentares insistirem na votação do PL, o Supremo Tribunal Federal tem pelo menos dois caminhos disponíveis. O primeiro, mais cauteloso, é aguardar a movimentação no Congresso e, se o projeto for promulgado, esperar o ajuizamento de alguma ação para eventualmente derrubar o texto. A segunda alternativa seria um controle prévio de constitucionalidade. A atuação preventiva acontece, via de regra, quando há risco de violação de cláusulas pétreas da Constituição.
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