A PEC do ajuste fiscal reacendeu a discussão sobre o pagamento dos chamados “supersalários” no âmbito do funcionalismo público. Sobretudo no que diz respeito ao ajuste ocorrer pelo lado da despesa, não apenas do incremento de receita – especialmente quando essa despesa custeia um grupo reduzido de carreiras. Nesse sentido, os dados levantados pelo economista Bruno Carazza, no estudo “Além do Teto: Análises e Contribuições para o Fim dos Supersalários”, realizado a pedido do Movimento Pessoas à Frente, são surpreendentes.
O autor promove um estudo do pagamento feito extra teto a servidores públicos do Executivo e do Legislativo, além de membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. A tática é conhecida: verbas de natureza remuneratória são criadas como sendo de natureza indenizatória, o que as excluem das deduções para cumprimento do teto, além de torná-las imunes à incidência do imposto de renda.
Nessas categorias estão os auxílios das mais diversas categorias (moradia, alimentação, saúde), além de gratificações por acúmulo de função – ou de processos – e verbas diversas, como indenização pelo uso do celular, pagamentos para custeio de creches de filhos ou dependentes e indenizações por utilização de veículo próprio. A complexidade desse mapeamento é gigantesca, uma vez que cada ente da federação possui um sistema próprio de divulgação, e pouquíssimos disponibilizam dados abertos em folha de pagamento.
A partir da Emenda Constitucional nº 41/2003, o inciso XI do art. 37 foi taxativo ao estabelecer que a remuneração dos servidores públicos não poderá ultrapassar o subsídio do Ministro do Supremo Tribunal Federal. Há o estabelecimento também de subtetos para os demais entes da federação: no município, por exemplo, o limite remuneratório é o subsídio do Prefeito.
No entanto, ao analisar os dados relativos ao ano de 2023, o autor do estudo constata que 93% dos magistrados brasileiros receberam um valor superior ao teto durante o agregado do ano de 2023. No Ministério Público, considerando 12 estados cujos dados foram consolidados, constata-se que 91,5% de promotores e procuradores também extrapolaram o teto remuneratório durante o exercício financeiro de 2023. Convertidos em cifras: no Poder Judiciário, as exceções ao teto representam uma despesa de R$ 7,1 bilhões. No Ministério Público, R$ 4,0 bilhões.
Para se ter um parâmetro comparativo, no Poder Executivo Federal, 0,14% dos servidores receberam acima do teto em 2023. O pagamento extra teto fica restrito é concentrado em carreiras específicas: advogados públicos, diplomatas e militares. É cristalino, portanto, que o problema está concentrado em determinadas carreiras.
No caso do Ministério Público e do Poder Judiciário, muitas dessas verbas são criadas administrativamente, sem passar pelo crivo do Poder Legislativo. O argumento é a autonomia orçamentária e financeira, além do princípio da separação dos poderes. A verdade é que são muitos os malabares realizados para tornar inefetivo o teto remuneratório imposto pela Constituição. Isso sem falar nos pagamentos de benefícios retroativos. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, até pouco tempo pagava as diferenças referentes às conversões da URV, ainda do período do Plano Real.
Existem algumas tentativas de conter esse aumento indevido das despesas de pessoal. O chamado “PL dos Supersalários” (PL nº 2.721/2021), aprovado no Senado, trazia alguns pontos interessantes, mas acabou sendo completamente desvirtuado na Câmara dos Deputados. Caso aprovado da forma como está, permitiria um aumento das formas de burla ao teto, do que propriamente uma contenção aos pagamentos dos supersalários.
Mais adequados às necessidades do país estão o PL nº 4.413/2024, de autoria do deputado Guilherme Boulos, e a PEC proposta pelos deputados Júlio Lopes, Pedro Paulo e Kim Kataguiri – embora ambos os textos possam ser reajustados e melhorados. No caso do PL de Boulos, por exemplo, a natureza de lei ordinária tornaria questionável sua aplicação diante de atos normativos de demais poderes, especialmente do CNJ e do CNMP.
O estudo realizado não deixa qualquer dúvida que a cultura do privilégio está enraizada em nosso país – aliás, título de um livro de Carazza: “O País dos Privilégios”. Como Sérgio Buarque de Holanda já destacou em Raízes do Brasil, “a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós”, da mesma forma que falta a “a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático”.
Nossa sociedade patrimonialista, marcada por um sistema que perpetua distorções e mantém uma elite com privilégios, encontra-se retratada em nossa literatura: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Triste Fim de Policarpo Quaresma, O Cortiço. A mudança é cultural, mas também exige reformas institucionais profundas. Esse pode ser o momento de começarmos a discuti-las.
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