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Opinião | Tentar a sorte

Essa crença na sorte grande é o motor intuitivo que alimenta milhões de brasileiros, que nunca se interessam por uma participação mais ativa na gestão da coisa pública. Preferem acreditar que um dia seus números na loteria esportiva garantirão uma bolada que resolverá seus problemas

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convidado
Por José Renato Nalini
Atualização:

É enorme a quantidade de pessoas que jogam e arriscam a sorte. Quantos milhões têm sido gastos nas loterias hoje conhecidas como “bets” e as casas de apostas costumam ter filas, principalmente quando as loterias têm prêmios acumulados.

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Algo instintivo ao ser humano. Confiar nas estrelas para resolver sua falta de dinheiro. Algo entranhado na cultura tupiniquim. Quem se dedicar a ler o mais famoso escritor brasileiro, Machado de Assis, verificará que em sua obra sempre esteve presente a sedução do jogo. Para ele, os bilhetes da loteria lembravam a luta de Jacó e o anjo, do Velho Testamento. E na obra “Relíquias da Casa Velha”, explicitou: “a loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia”.

Os poetas, em regra, são pessoas cujo pensamento vaga pelo etéreo. Nem sempre conseguem conciliar a elaboração de versos e ganhar dinheiro suficiente para se manter e à família. Por isso, mais suscetíveis à tentação do jogo.

Guimarães Passos, (1867-1909), o poeta alagoano, jogava constantemente no bicho, para ele mais um sonho do que um recurso para sobreviver. Jogava todos os dias. Queria receber quantias modestas, que desse para o gasto diário.

Certa feita, quando subiu o morro no Rio para buscar, em casa de sua lavadeira, uma camisa que mandara engomar, foi recebido por ela com o sinal de que ficasse quieto. Era para não perturbar uma pessoa que estava sonhando “com o bicho que ia dar”.

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O poeta ficou bem animado. Acomodou-se numa cadeira e ficou a esperar o resultado do sonho. Quando soube que “ia dar macaco”, desceu correndo o morro, deixando a camisa nas mãos da lavadeira.

Não se sabe se ganhou alguma coisa daquela feita.

Costumava também pedir aos colegas alguns tostões para jogar, porque intuíra qual o animal que atenderia aos seus desejos. Conta João Ribeiro, outro escritor contemporâneo, que ele exigia as moedas, dizendo que a questão era matemática: “hoje, com toda a certeza, dá cabra!”.

No final da tarde, vinha ele, com o dinheiro da aposta: “Eu não lhe disse que daria cabra?”.

Quando morreu José do Patrocínio, amigo velho, companheiro da roda boêmia, Guimarães Passos fez questão de ficar no cemitério após aquele meticuloso trabalho do coveiro, encarregado de cimentar todos os orifícios do túmulo, manejando com esmero e arte a pá de pedreiro com o cimento ainda úmido.

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Os amigos iam à frente, já deixando o cemitério. Olegário Mariano foi o único a esperá-lo no portão do São João Batista, onde eram e ainda são enterradas todas as personalidades cariocas. Mas Guimarães Passos estava demorando muito. O funcionário do campo santo já ameaçava fechar o portão e Guimarães Passos não chegava.

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Olegário Mariano resolveu procurar por ele. Encontrou-o ajoelhado junto à sepultura de José do Patrocínio, recém-enterrado, falando ao amigo morto: - “Zeca, eu trabalhei anos e anos no teu jornal e só de longe em longe te lembraste de me pagar. Agora, meu filho, tem paciência. Trata de me dar uma ajuda. Eu tomei nota do número de tua sepultura e vou jogar nesse milhar. Por favor, Zé do Pato, não abandones este amigo velho. Tu sabes que eu ando apertado. Dá um jeito de eu ganhar...”

No dia seguinte, jogou boa quantia. E parece que acertou...

Essa crença na sorte grande é o motor intuitivo que alimenta milhões de brasileiros, que nunca se interessam por uma participação mais ativa na gestão da coisa pública. Preferem acreditar que um dia seus números na loteria esportiva garantirão uma bolada que resolverá seus problemas. Confiam mais na remota possibilidade de ficarem ricos fazendo jogos, sem meditar nas estatísticas e sem fazer o cálculo matemático desvanecedor das ilusões.

Valem-se dessa ingenuidade os astuciosos malfeitores que vendem as “pirâmides”, os ganhos garantidos, as artificiosas promessas que nunca se concretizam e que só atendem à volúpia ambiciosa dos estelionatários.

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A sorte assiste aos que procuram investir em trabalho, em criatividade, em inovar e em produzir soluções para os incontáveis problemas ainda não equacionados. A exploração de loterias atende exclusivamente ao setor estatal ancorado na singeleza da mente limitada dos que renunciam à iniciativa para ter fé no acaso, que dentre infinitas possibilidades, contemplaria os números escolhidos pelo apostador.

Assim caminha a humanidade. Poucos vivem às custas dos muitos que se recusam a encarar a realidade e preferem se considerar alvos de uma conjunção astral que os escolherá dentre milhões de iludidos.

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Foto do autor José Renato Nalini
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José Renato Nalini
Reitor da UNIREGISTRAL, docente da pós-graduação da UNINOVE e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Alex Silva/Estadão
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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

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