No final de 2020, escrevemos uma retrospectiva do ano para o Terceiro Setor. Foram destaques as dificuldades impostas às Organizações da Sociedade Civil (OSCs) pela pandemia de Covid-19, que aumentou a desigualdade socioeconômica do País e evidenciou a incapacidade do Poder Público de enfrentá-la.
A crise impactou diretamente a captação de recursos pelas entidades sem finalidade lucrativa, causou a suspensão total ou parcial das atividades e foi fundamento para o contingenciamento e redução de repasses públicos no âmbito de parcerias com o Estado.
O estudo "Impacto da Covid-19 nas OSCs brasileiras: da resposta imediata à resiliência" [1], realizado pela Mobiliza em parceria com a Roes Partnes, demonstra bem essa realidade: 73% das OSCs relatam que foram impactadas e a crise as enfraqueceu muito (36%) ou parcialmente (37%). E 87% das OSCs tiveram todas (36%) ou parte (51%) de suas atividades interrompidas ou suspensas.
O ano de 2021, infelizmente, não foi uma grande ruptura desse cenário, mas sim uma continuação dos mesmos desafios já experimentados ao longo do ano passado, não obstante o avanço da vacinação no Brasil. Além dos desafios tradicionais, a atuação do Poder Executivo Federal evidenciou novas preocupações, como meio ambiente, ciência, democracia e direitos indígenas.
Apesar de todas as dificuldades, foi e continuam sendo notáveis a resiliência, criatividade e articulação das OSCs, a partir de uma atuação em rede, de base comunitária e com foco no atendimento da população mais vulnerável.
Merecem destaque as entidades que se dedicam à saúde e à assistência social, por atuarem na linha de frente do enfrentamento da pandemia de Covid-19 e do combate à fome e à pobreza. Foi por meio dessas entidades que, por exemplo, serviços públicos essenciais foram prestados e recursos chegaram às populações mais afetadas.
Igualmente, vale mencionar a efetiva resposta dadas pelas Organizações Sociais que operam hospitais públicos, que - logo no início da pandemia - imediatamente revisitaram seus planos de trabalho para suprir a urgência do atendimento clínico do coronavírus. O setor cultural também encontrou saídas para o fechamento total dos museus: se mobilizaram para disponibilizar conteúdo online, visitas virtuais guiadas e experiências interativas para os usuários.
Após quase dois anos de combate à pandemia, marcados por inseguranças e incertezas, é possível afirmar que as entidades do Terceiro Setor continuarão aliadas importantes na busca pela efetivação de direitos fundamentais e sociais.
A questão que permanece agora é: como enfrentar o período pós-crise?
Em primeiro lugar, é essencial fortalecer o número de doações destinadas às OSCs.
O Índice de Solidariedade 2021 (World Giving Index) [2], realizado pela Charities Aid Foundation, aponta o Brasil em 54º lugar no ranking. Apesar do país ter subido 14 posições em relação a 2018, ainda ocupa uma posição baixa, dentre 114 países no total.
O Monitor das Doações Covid-19, iniciativa da ABCR, cujo objetivo é consolidar e dar maior transparência ao número das doações realizadas em razão do coronavírus, apresenta números positivos: até a data deste artigo, foram doados mais de 7 bilhões de reais.
Porém, a demanda continua aumentando. Esse movimento de solidariedade deve ser perene, e não apenas durante a pandemia. As doações devem se expandir para todas as áreas, para além da saúde e assistência social, e também se direcionar não apenas a projetos carimbados, mas ao custeio administrativo das próprias organizações.
A reforma tributária atualmente discutida é uma excelente oportunidade para fortalecer a cultura de doação do país, mas enfrenta obstáculos. Há três textos principais que estão sendo debatidos no Congresso, mas nenhum endereça as demandas do Terceiro Setor como prioridade.
Além de poder simplificar o sistema tributário, a reforma pode ampliar os benefícios fiscais para as OSCs e tocar em um tema caro ao setor: o ITCMD - Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação, que incide sobre as doações recebidas.
Além de ter uma finalidade extremamente questionável, por incidir sobre valores que poderiam ser destinados integralmente para projetos de interesse público, representa um valor ínfimo para os cofres públicos. Conforme publicação da FGV Direito [3], para o estado de São Paulo (que mais arrecada ITCMD no Brasil), o recolhimento de ITCMD representa menos de 1% da arrecadação total. Vale lembrar que essa porcentagem considera tanto heranças como doações, de organizações com e sem fins lucrativos, de forma que a arrecadação em relação somente às doações ao Terceiro Setor deve ser ainda mais insignificante.
Uma isenção ampla para as OSCs tem o potencial de alavancar a captação de recursos, bem como fortalecer a sustentabilidade econômica das entidades e contribuir para a geração de impacto na sociedade.
Em segundo lugar, o momento requer o fortalecimento da colaboração e estreitamento do diálogo entre parceiros, tanto público como privados, nacionais e internacionais. A ideia é congregar interesses e somar forças.
São exemplos de iniciativas e movimentos de articulação a Ação Brasileira de Combate às Desigualdades; Plataforma de Direitos Humanos - Dhesca Brasil; Pacto pela Democracia; Rede Liberdade e Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, além de entidades mais tradicionais como ABONG, Rede Filantropia e FONIF.
Em terceiro e último lugar, é necessário o fortalecimento da governança das entidades do Terceiro Setor.
De forma geral, a governança envolve a criação de mecanismos que podem proporcionar maior transparência e assegurar instâncias que zelem pela adequação das atividades desenvolvidas. As regras de governança, se atualizadas e adequadas, têm potencial para ampliar a conformidade e a legitimidade das decisões, garantir o alinhamento entre discurso e prática e mitigar riscos de responsabilização e de reputação.
Manter uma boa estrutura de governança é um caminho para garantir que a organização atue de forma eficiente e inovadora, exercendo um papel ético e ativo na sociedade. Especialmente num contexto de desconfiança e criminalização do Terceiro Setor, pode ajudar a aumentar a credibilidade das OSCs e qualificar a sua comunicação junto ao público, aproximando doadores.
Para o ano de 2022, que o Terceiro Setor continue forte e atuando em prol de uma sociedade mais justa, democrática e cidadã. Mas não deve fazer isso sozinho: cabe ao Estado criar um ambiente regulatório favorável ao desenvolvimento as suas atividades, e a todos nós promover os direitos sociais, especialmente de pessoas em situação de maior vulnerabilidade social, que necessitam de respostas urgentes e efetivas.
NOTAS:
[2] Disponível em https://www.idis.org.br/publicacoesidis/world-giving-index-2021/#:~:text=Segundo%20o%20World%20Giving%20Index,tamb%C3%A9m%20ficou%20em%20primeiro%20lugar.
*Raquel Grazzioli é advogada do escritório Rubens Naves, Santos Júnior
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