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Opinião|Um fato grave

O agente público não pode usar de seus motivos pessoais para atingir fins outros fins. O ex-presidente Bolsonaro poderia ser enquadrado por crime de responsabilidade que poderia ensejar um impeachment. No entanto, ele já deixou o cargo, perdendo tal acusação o objeto. Deve ser apurada improbidade administrativa

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convidado
Por Rogério Tadeu Romano

I – O FATO

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Consoante o que expôs o jornal O Globo, em 16.7.24, em uma gravação de mais de uma hora de uma reunião entre o ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência ( Abin) Alexandre Ramagem (PL), o então presidente Jair Bolsonaro discutiu as investigações sobre a suposta prática de rachadinha por parte do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), sugeriu procurar o chefe da Receita Federal e disse que deveria trocar o coronel que o informava pelo serviço secreto russo.

Ainda informou o portal de notícias do Estadão, na mesma data:

“A denúncia contra Flávio foi arquivada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 2022 com base em uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) do ano anterior que anulou provas contra o filho “01″ do ex-presidente. O STJ concordou com o argumento da defesa de Flávio de que o caso não poderia ter sido julgado por um juiz da primeira instância, no caso Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, porque ele teria foro privilegiado.

OUÇA A REUNIÃO DE BOLSONARO

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A reunião cujo áudio veio a público nesta segunda-feira é anterior à anulação. Um dos caminhos discutidos foi tentar provar que o Relatório de Inteligência Fiscal (RIF) que deu origem à investigação contra Flávio era ilegal. “Se a gente conseguir provar que eles fizeram toda essa apuração, e só depois eles criaram com esse RIF espontâneo. E por meio dessas senhas invisíveis, a gente consegue a nulidade do RIF. A gente consegue anular tudo”, diz a advogada Bierrenbach logo no início da conversa.

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Segundo ela, os auditores da Receita Federal teriam uma senha que torna indetectável o acesso feito por eles às bases de dados do órgão. Por isso, seria necessário acionar o Serpro. O órgão teria capacidade de realizar uma investigação e detectar os supostos acessos “invisíveis” aos dados financeiros de Flávio.

A conversa segue e então Bolsonaro afirma: “Caso de conversar com o chefe da Receita [...] Ninguém tá pedindo favor aqui. [inaudível] é o caso conversar com o chefe da Receita. O Tostes (José Barroso Tostes Neto)”, diz o ex-presidente, conforme transcrição do áudio feita pela Polícia Federal.

O ex-chefe do Executivo também sugere procurar Gustavo Canuto, ex-ministro de Desenvolvimento Regional em seu governo. Bolsonaro aparentemente se confunde e acha que Franco é o presidente do Serpro. Na verdade, ele era chefe do Dataprev, empresa de tecnologia e informações da Previdência Social.

“Era ministro meu e foi pra lá. Sem problema nenhum. Sem problema nenhum conversar com ele. Vai ter problema nenhum conversar com o Canuto”, afirma Bolsonaro.”

II – O DESVIO DE FINALIDADE

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Houve, sem dúvida, evidente desvio de finalidade.

O presidente da República não pode usar o cargo para defender interesses privados.

Um ato praticado por desvio de finalidade não se sustenta.

Se houve desvio de finalidade o ato é nulo, sem qualquer efeito jurídico.

Repito, na íntegra, a lição de Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos, 2ª edição, pág. 89 e 90), assim disposta; “A atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública dele se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.”

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Prossegue o eminente administrativista, que tantas lições deixou entre nós, alertando que se a lei previu que o ato fosse praticado visando a certa finalidade, mas a autoridade o praticou de forma diversa, há um desvio de finalidade.

Na doutrina, aliás, do que se tem de Roger Bonnard, as opiniões convergem no sentido de que, a propósito da finalidade, não existe jamais para a Administração um poder discricionário.

Assim não lhe é deixado o poder de livre apreciação quanto ao fim a alcançar. Isso porque este será sempre imposto pelas leis e regulamentos. E adito: pela Constituição, que, no artigo 37, estabelece, impõe, respeito à legalidade, moralidade, impessoalidade, dentre outros princípios magnos que devem ser seguidos pela Constituição. A literalidade do texto é mais que evidente.

Há no ato administrativo, para sua higidez e validade, um fim legal a considerar.

Marcelo Caetano (Manual de direito administrativo, pág. 507) distinguia os desígnios pessoais, os cálculos ambiciosos, as previsões que o agente faz de si para si, no momento em que se determina a exprimir a vontade administrativa, sem repercussão positivamente exteriorizada, na prática do ato, daqueles que se refletem de modo objetivo na sua prática, vindo a desvirtuá-lo em sua finalidade objetiva.

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O agente público não pode usar de seus motivos pessoais para atingir fins outros fins.

O ex- presidente Bolsonaro poderia ser enquadrado por crime de responsabilidade que poderia ensejar um impeachment. No entanto, ele já deixou o cargo, perdendo tal acusação o objeto.

Deve ser apurada improbidade administrativa, que não é propriamente um crime, mas um ilícito civil, é agir de forma desonesta e ilícita”, contra os interesses da Administração.

III – HOUVE O CRIME DE ADVOCACIA ADMIINSTRATIVA?

Disciplina o artigo 319 do CP:

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Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

O elemento subjetivo é o dolo específico consistente na vontade de satisfazer um interesse pessoal ou específico.

Se há interesse pecuniário o crime é de corrupção passiva.

Na forma comissiva pode ocorrer tentativa.

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Exige-se que haja ato de ofício, de modo essa conduta envolve os deveres funcionais do funcionário.

O crime de advocacia administrativa é próprio, formal e de concurso eventual, cuja essência proibitiva recai sobre a defesa de interesses privados perante a Administração Pública por funcionário público. O patrocínio do interesse privado e alheio, legítimo ou não, por funcionário público, perante a Administração Pública, pode ser direto, concretizado pelo ele próprio, ou indireto, valendo-se ele de interposta pessoa, para escamotear a atuação. Fundamental que o funcionário se valha das facilidades que a função pública lhe oferece, em qualquer setor da Administração Pública, mesmo que não seja especificamente o de atuação do agente.

Destaco aqui que a jurisprudência no sentido de que não se pode reconhecer o crime de prevaricação na conduta de quem omite os próprios deveres por indolência ou simples desleixo, se inexistente a intenção de satisfazer interesse ou sentimento pessoal (JUTACRIM 71/320) e ainda outro entendimento no sentido de que ninguém tem a obrigação, mesmo o policial, de comunicar à autoridade competente fato típico a que tenha dado causa, porque nosso ordenamento jurídico garante ao imputado o silêncio e até mesmo a negativa de autoria (RT 526/395)

Dizem Antonio Pagliato e Paulo José da Costa Júnior (Dos crimes contra a administração pública, pág. 138) que o interesse não deve ser de ordem econômica, pois isso configura o crime de corrupção passiva. Na lição de Guilherme de Souza Nucci ( Código penal comentado, 8ª edição, pág. 1.062) sentimento pessoal é a disposição afetiva do agente em relação em relação a algum bem ou valor. O funcionário que, pretendendo fazer um favor a alguém, retarda ato de ofício, age com “interesse pessoal”, se fizer o mesmo para se vingar de um inimigo, age com “sentimento pessoal”. A atuação do agente para satisfazer “interesse pessoal” consistente em livrar-se de processo administrativo ou judicial e considerada parte de seu direito a autodefesa, não se configurando o delito.

É crime próprio, formal, comissivo ou omissivo (quando resulta em abstenção), mas a conduta de retardar pode ser praticada por ação (esconder os autos de um processo, visando a sentimento pessoal) ou por omissão. Pode de forma excepcional ser crime omissivo próprio. É crime instantâneo, unissubjetivo, plurissubsistente.

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Rogério Tadeu Romano
Procurador regional da República aposentado, professor de Processo Penal e Direito Penal e advogado. Foto: Arquivo pessoal
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