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Opinião | Um sábio e um poeta

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convidado
Por José Renato Nalini

Foi esse o título que Afrânio Peixoto conferiu ao discurso de recepção a Oswaldo Gonçalves Cruz, que passou a ocupar a vaga de Raimundo Corrêa na Academia Brasileira de Letras. Esse discurso foi proferido em 26 de junho de 1913, há cento e onze anos, portanto.

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E quem era o ingressante no Olimpo Intelectual brasílico? Era o médico Oswaldo Cruz, nome pelo qual passou à história o cientista nascido em São Luiz do Paraitinga, em nosso Estado.

Afrânio iniciou dizendo que não é surpreendente a presença de um cientista numa Academia de Letras. Acrescentou: “Podereis passar sem nós! A Academia vos requestou. Nisto ela é bem feminina – que pecado feliz – quando procura possuir todas as joias ao seu alcance”.

Nada a estranhar, portanto, que cientistas ascendam às Academias. Não existe diferença essencial entre ciências e letras, “a não ser que umas se fazem com as outras e estas, pela literatura”.

Essa discussão percorre a História. Homero foi acusado de ter escrito, em versos, um guia de viagens pelo Mediterrâneo. As Geórgicas não são mais do que um tratado de meteorologia aplicada, de agricultura e economia rural, pedido por Augusto a Virgílio. O poema de Lucrécio, sobre a natureza das coisas, é o prefácio encantador da ciência contemporânea.

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Pasteur não escreveu sequer livros de ciência, passou a vida a fazer bem maior e a construir glória mais duradoura, teve assento na Academia Francesa, inspiradora de todas as demais na Idade Moderna.

A humanidade louva os artistas, pois a entretêm e a divertem. Todavia, “ela esquece, ou não lhes rende a tempo a justiça da gratidão, àqueles que lhe preparam uma vida mais fácil e quase benigna, pela dominação de todas as forças naturais postas ao seu serviço, pela posse de todas as riquezas e proveitos do mundo ao alcance de sua utilidade, pelo conforto, saúde, segurança, com que, ao invés de um prazer efêmero, se tem uma tranquilidade permanente”.

Oswaldo Cruz sucedeu a um poeta. Sua eleição explicitou o propósito de afirmar que ali se abrem “sucessões à inteligência e não à herança. Um sábio é o parente mais próximo de um poeta. No amor da natureza e nas ânsias por seduzi-la e por compreendê-la, há entre os dois apenas a diversidade dos meios. E não raro eles se encontram: Goethe não será exemplo singular”.

Oswaldo Cruz era médico sentimental. Dotado de coração terno e sentidos delicados. Tinha a piedade religiosa que já escapava ao comum dos homens. Por isso é que, daquele instituto então perdido numa restinga de mangue, hoje a Fundação Oswaldo Cruz, ele edificou um palácio encantado. Um grande retrato, objetivo e espiritual, que partilha com a grande família intelectual, discípulos que se devotam a descobrir soluções para os males humanos.

Era um cientista para quem a vontade eficaz basta para suprir todas as insuficiências das coisas e dos homens. Mas era preciso enaltecer o papel de Oswaldo Cruz na árdua campanha pelo saneamento e pela saúde, ambos dependentes e conexos. Foi a atilada perspicácia de Rodrigues Alves que entregou a Oswaldo Cruz a direção da saúde pública. Foi uma luta aguerrida, mas ele conseguiu o benefício imenso de uma redenção sanitária. O homem criticado, injuriado, difamado, incompreendido, ganhou a confiança do país e do mundo.

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A ciência tem sua poesia, áspera e forte. Poesia violenta de ação, feita também de sofrimento, mas de vontade dominadora. Por isso Oswaldo Cruz congrega todos os méritos que fazem grande o homem, orgulho de sua espécie. A sensibilidade com que no trato íntimo, na família, entre amigos e discípulos, colegas e subordinados, o fez querido e venerado. A inteligência com que abriu caminhos novos ao conhecimento, educando uma geração de sábios, que chegaram a honrar seu mestre, ufania desta terra.

Afrânio Peixoto encerra sua oração: “A Academia Brasileira, que pretende ser o índice abreviado da cultura nacional, faltaria à sua nobre ambição, se não vos cobiçasse. E se vos tem hoje, não lhe deveis por isso gratidão. Não o estranhará a ninguém. É porque tínheis aqui, desde muito, um lugar garantido”.

Convidado deste artigo

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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Daniela Ramiro/Estadão
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