O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, ordenou no dia 41.10.24 a retirada de circulação de quatro livros jurídicos que contêm conteúdos homofóbicos e misóginos. Dino também determinou que os dois autores das obras, Luciano Dalvi e Fernando Dalvi, e a editora responsável pelas publicações, paguem uma indenização de R$ 150 mil por danos morais coletivos.
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Os livros retirados de circulação são “Curso Avançado de Biodireito”, “Teoria e Prática do Direito Penal”, “Curso Avançado de Direito do Consumidor” e “Manual de Prática Trabalhista”. As obras foram criticadas por conter expressões como “prática doentia” e “anomalia sexual” em relação à homossexualidade.
É certo que Dino explicou que, embora a Constituição garanta a liberdade de expressão e proíba a censura, a expressão do pensamento não pode “se chocar” com outros direitos fundamentais. O próprio texto constitucional traz “limites explícitos à tal liberdade”.
O ministro ressaltou que o Brasil registrou 257 mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ em 2023. Ele também destacou que o país é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, como lembrou o portal de notícias Consultor Jurídico, em 1.11.24.
Para o ministro Dino, as obras contestadas pelo MPF “não estão albergadas pelo manto da liberdade de expressão”, pois violam o direito à igualdade e à dignidade humana e endossam a violência, o ódio e o preconceito contra grupos vulneráveis.
O MPF acionou a Justiça após alunos da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná, identificarem o conteúdo homofóbico nas obras, que estavam disponíveis na biblioteca da instituição de ensino.
Os livros, em tese, tratam de Biodireito, Direito Penal, Direito do Consumidor, Direito do Trabalho e Direito Constitucional, mas contêm trechos com divagações de teor discriminatório.
Uma das obras cita a suposta existência de propagandas que manipulam crianças a se tornarem homossexuais. Outra passagem diz que essa “influência” pode levar ao fim da humanidade, pela falta de “procriação” ou pela propagação do vírus HIV.
Outros trechos condenam o sexo anal e classificam a homossexualidade (citada de forma pejorativa como “homossexualismo” nos textos) como uma “anomalia sexual” maléfica a ser combatida. Nos livros, bissexuais também são chamados de doentios. Há ainda a menção a uma suposta “máfia gay”.
Quanto às mulheres, algumas passagens alegam que elas só são “escolhidas” pelos homens para casar se forem “menos afetas à promiscuidade”. Os autores ainda discorrem sobre “as mulheres mais cobiçadas do mercado”, de “uso exclusivo” dos “playboys”.
O caso chegou ao STF por meio de recurso do MPF, já que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região impediu, em 2016, a retirada de circulação dos livros. A maioria do colegiado entendeu, à época, que o conteúdo não tinha potencial para disseminar o ódio.
Disse bem Lygia Maria, em artigo para a Folha, em 4.11.24: “Banir livros é medida típica de ditaduras”.
“A corte constitucional não deveria tutelar a esfera do debate público, ainda mais com o banimento de livros —medida típica de ditaduras. Os disparates nas obras já são amplamente refutados por pesquisas acadêmicas e leis que garantem os direitos de homossexuais e mulheres.”
Não se pode falar em censura previa numa Democracia.
Os regimes democráticos estão filosoficamente calcados na concepção relativista, cujo princípio fundamental é o da tolerância.
A decisão ignora outros dispositivos constitucionais: o artigo 5º, IX, garantia a livre expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação; o artigo 218 garante a promoção e o incentivo à pesquisa; o artigo 220, por exemplo, veda qualquer restrição sobre a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação. Nenhuma ponderação a respeito dessas cláusulas constitucionais foi feita
A seguir o raciocínio da sentença, deveriam ser submetidos à censura ou abarcados pelo “index jurisdicional” outros textos que agridem flagrantemente a dignidade humana e outros princípios jurídicos (argumento ad absurdo), por exemplo: a) o Antigo Testamento, pois a “lei mosaica” tem disposições normativas sobre a pena de apedrejamento de “filho obstinado e rebelde” (Deuteronômio, cap. 21, v. 18-21), de açoitamento ao que for condenado em uma ação judicial (Deuteronômio, cap. 25, v. 1-4), canibalismo entre pais e filhos no caso de desobediência a Deus (Levítico, cap. 26, v. 27-29), a justeza da escravidão (Êxodo, cap. 21, v. 1-11) etc.; b) a Política, de Aristóteles, na qual este afirma que certos indivíduos são naturalmente escravos, nascidos somente para obedecer e servirem de instrumentos no governo doméstico (economia); c) os textos de G. Hegel que declaram a superioridade da civilização germânica sobre as demais.
Afinal, a ordem constitucional é democrática, a teor do artigo 1º da Constituição Federal.
Data vênia, a decisão afronta ao princípio impositivo democrático exposto no artigo 1º da Constituição Federal.
Como dito no Portal da Veja, em 3 de fevereiro de 2016, “O Brasil é um país de pouco apego à liberdade de expressão. Até alguns meses atrás, era necessária uma autorização para você poder publicar uma biografia de algum personagem público”, afirma o advogado Cláudio Lins de Vasconcelos, diretor-relator da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), lembrando a mordaça às biografias derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Dir-se-ia que as democracias constitucionais já estabeleceram mecanismos voltados a conter ataques aos seus pilares fundamentais. Mas, a democracia, como forma de convivência, tem sempre a sua volta o espectro de pensamentos contra ela voltados.
Para tanto, há, como no Brasil, com sua Constituição-cidadã de 1988, a fixação de cláusulas pétreas que defendem a sua integridade contra qualquer possibilidade de alteração. Isso é um indicativo a Corte Constitucional, suprema guardiã da Carta Democrática, para a sua atuação.
Ora, não há censura prévia no Brasil.
Disse o ministro Celso de Mello:
“Uma República fundada no princípio da liberdade e estruturada sob o signo da ideia democrática não pode admitir, sob pena de ser infiel à sua própria razão de ser, que os curadores do poder subvertam valores essenciais como aquele que consagra a liberdade de manifestação do pensamento”.
Num Estado democrático de direito, cuja Constituição libertária proíbe a censura, não se pode falar em proibição de divulgação de obra, voltando-se aos tempos de um Estado Autocrático.
Uma justificativa célebre para essa primazia dada à liberdade de expressão, que engloba até mesmo discursos de ódio e preconceito, vem do constitucionalista americano Ronald Dworkin, segundo o qual permitir que as ideias circulem sem entraves é um elemento fundamental da democracia “porque o Estado deve tratar todos os cidadãos adultos como agentes morais responsáveis, sendo esse um traço essencial ou constitutivo de uma sociedade política justa”.
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