É uma incógnita a explicação para o escândalo de R$ 20 bilhões ou mais da Americanas. Se as "inconsistências contábeis" no balanço resultaram de erro ou fraude, só saberemos quando terminarem as investigações. Erro contábil ou fraude, o que tudo indica claramente é para um "equívoco gravíssimo" na governança corporativa. O escândalo contábil da Americanas lembra o caso Enron, onde práticas contábeis ilícitas inflaram fraudulentamente as receitas da empresa. E a pergunta que vale 1 bilhão: como o conselho de administração não viu as inconsistências? O conselho fiscal não observou nada de diferente no balanço? E a auditoria que assinou o balanço não conseguiu entrever coisa nenhuma? Nem mesmo os fundos de investimento não foram capazes de perceber nenhuma red flag? Isso para não falar nos órgãos reguladores e na própria diretoria executiva da Americanas. A responsabilidade das empresas perante a sociedade vai além da produção de bens, oferta de serviços e da geração de dividendos aos acionistas. Uma forte cultura de integridade é o esperado das empresas para responder às expectativas legítimas da sociedade contemporânea.
A sigla ESG virou moda no mundo dos negócios, para a abreviação em inglês de ambiental, social e governança. Governança corporativa, o G da sigla ESG, é como a empresa organiza e dá transparência ao seu processo decisório e administrativo. Empresas que representam boas práticas de governança são aquelas que zelam pela retidão de suas atividades, garantindo a independência dos seus órgãos de controle e a transparência dos mecanismos de prestação de contas. A Americanas faz parte do Novo Mercado, seleta lista de empresas de referência na B3 que têm um padrão diferenciado de governança corporativa, assim como do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), indicador de desempenho de boas práticas ESG. As inconsistências contábeis reveladas pela Americanas não diminuíram a credibilidade das empresas constantes no Novo Mercado, nem do ISE e nem das práticas ESG, pois todos esses exercem papel fundamental no incentivo às boas práticas de governança e sustentabilidade no setor privado. A Americanas aparentemente entendia que fazer parte do Novo Mercado, o ISE e as práticas ESG nada mais eram do que um "bom ter" na parede. É certo que a obsessão pelo lucro falou muito mais alto, do que as boas práticas de governança corporativa, que devem ser vistas como um "must have" ("deve ter") e não como um é "bom ter".
Governance-washing é quando empresas querem que seus stakeholders, e seus investidores em particular, pensem que suas políticas de governança são mais diversificadas, inclusivas, transparentes e orientadas para as práticas ESG do que elas são realmente. A Americanas comprava produtos a prazo dos fornecedores, o banco adiantava o pagamento aos fornecedores e a Americanas pagava com juros o valor ao banco. Essa operação é conhecida como "risco sacado". Os registros contábeis da operação de "risco sacado" foram feitos no balanço da Americanas na conta de fornecedores, quando deveriam ser lançados como dívidas com instituições financeiras. Resultado: com esse modo de lançamento contábil o lucro é majorado pelo não lançamento no demonstrativo de despesa financeira e há uma redução artificial do passivo com fornecedores. Com isso, a Americanas é o maior caso de governance-washing do Brasil. Os bilhões revelados de "inconsistências contábeis" chocaram clientes, fornecedores, colaboradores, acionistas, instituições financeiras, agentes do mercado, enfim, todos os stakeholders. A sociedade se tornou intolerante a escândalos de não-compliance dos critérios ESG. Como recuperar a legitimidade de uma empresa após um escândalo de governance-washing?
O ESG pode ser eficaz. A abordagem ESG traz um novo tipo de capitalismo, mais sustentável, diversificado e inclusivo. Os objetivos ESG devem estar claramente definidos, comunicados e mensurados para servirem como um caminho e uma solução para a empresa. Atingir metas ESG não é uma corrida de velocidade, uma prova de 100 metros, mas sim uma longa maratona. Criar mecanismos de controle de governança requer incentivos de médio e longo prazo, vinculados aos interesses monetários dos investidores. A obsessão por resultados financeiros, como um dos principais valores, levará a empresa, cedo ou tarde, a ter graves problemas éticos e de integridade, a Americanas que o diga. Uma política ESG deve estar totalmente integrada à estratégia de negócios da empresa e se tornar uma parte da cultura corporativa. Este é o melhor remédio contra o governance-washing, ou o greenwashing (ambiental), ou o bluewashing/social-washing (social). O ESG não precisa ser salvo. Basta apenas que seja plenamente implementado. O que é importante, porém, não é necessariamente fácil de ser alcançado.
O escândalo da Americanas deve ser visto sob dois olhares diferentes. Um deles é entender como a Americanas foi responsável por um escândalo sem precedentes que perdurou por uma década e sem que ninguém percebesse o que estava ocorrendo. O outro é ver a Americanas como parte de um mecanismo muito maior, de um risco sistêmico no setor privado. Nesse ponto, o papel dos reguladores é fundamental. Como outras empresas estão contabilizando a operação de "risco sacado"? É fato que é prática comum para as empresas usarem o "risco sacado", para melhorar a gestão de fluxo de caixa. A inconsistência da Americanas se deu na ocultação contábil dos juros e na classificação incorreta dos empréstimos. Chegou a hora então de uma lei Sarbanes Oxley (SOx) brasileira[1], para proteger stakeholders de erros contábeis e práticas corporativas fraudulentas?
[1] A Lei Sarbanes Oxley foi a resposta do Congresso norte-americano ao escândalo da Enron e WorldCom.
*Ligia Maura Costa, professora titular na FGV EAESP, coordenadora do FGVethics, advogada, conselheira independente
Artigo publicado originalmente na coluna Corrupção em Debate, no STB News, em 24 de janeiro
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