Antes da pandemia do coronavírus esvaziar as salas de cinema, Vingadores: Ultimato se tornou o filme de maior bilheteria de todos os tempos, com quase US$ 2,8 bilhões arrecadados no mundo todo. A franquia de filmes a que pertence, o Universo Cinematográfico Marvel, é a maior da história, com mais de US$22,5 bilhões arrecadados em dez anos, e reinventou Hollywood e a indústria do entretenimento.
Todo mundo lembra que esses filmes de super-herói ganharam força após a bilionária aquisição da Marvel pela Disney, em 2009. O que ninguém parece associar é essa prosperidade financeira à falência. Mas o fato é que a existência das duas empresas por trás desse fenômeno cultural é um atestado do bom funcionamento da lei de falências nos Estados Unidos.
Em 1923, a Laugh-O-Gram Films, estúdio criado pelo jovem Walt Disney no ano anterior, faliu. Isso não impediu que ele e seu irmão Roy fundassem a Walt Disney Studios poucos meses depois, para encantar gerações por quase um século. Se a falência norte-americana punisse os empresários pelas dívidas de suas empresas, os levasse a nocaute e não os permitisse se reerguer, o mundo nunca teria conhecido Mickey Mouse ou assistido a Branca de Neve e os Sete Anões.
A Marvel Entertainment, conhecida pelas histórias em quadrinhos de super-heróis, quebrou em 1996. No ano seguinte, obteve um empréstimo de US$100 milhões, foi vendida, e passou a licenciar seus personagens para o cinema. Se a lei de falências americana não dispusesse de mecanismos hábeis e seguros para o financiamento e a aquisição de empresas falidas, é provável que Homem-Aranha, Capitão América e Thor fossem hoje apenas desenhos estampando velhos gibis empoeirados.
É de arrepiar imaginar como seria a indústria do entretenimento se essas falências tivessem ocorrido no Brasil. Os processos de insolvência no país ficaram conhecidos pela sua ineficiência. Os empresários eram arrastados para os intermináveis processos de falência das companhias que controlavam ou administravam, e só podiam empreender novamente, mostrando que aprenderam com seus erros, se recorressem à informalidade. Os ativos das companhias quebradas ficavam encalhados, nem operando e nem postos à venda, enquanto advogados disputavam valores que derretiam. E ninguém emprestava dinheiro para a empresa combalida, dada a insegurança jurídica. As empresas não se recuperavam, os credores não recebiam, os empresários se desanimavam, os investidores se afastavam, e os ativos não se realocavam na economia.
Mas o rumo dessa história pode mudar. Em janeiro, entrou em vigor a Lei 14.112 de 2020, reformando a Lei 11.101 de 2005, que rege as falências e recuperações de empresas. A nova lei prevê que a empresa se livre das dívidas após três anos da decretação da quebra, e não mais décadas depois, como costumava ocorrer. Impede que os efeitos da falência sejam estendidos para os acionistas e administradores, restringindo a responsabilização a hipóteses excepcionais. Dá segurança para o financiamento de empresas em recuperação judicial - agora, o dinheiro emprestado tem prioridade quase absoluta sobre outros créditos. E acelera e facilita a transferência de ativos das empresas falidas: o administrador judicial nomeado pelo juiz deve vendê-los em seis meses.
A reforma, é verdade, ficou bem longe do ideal, como apontam seus diversos críticos. Há pontos polêmicos, alterações desnecessárias, conceitos equivocados, pontas soltas e falhas na técnica legislativa. E há vetos presidenciais que afetaram conquistas importantes - como a possibilidade de utilização de prejuízo fiscal, sem limite, para abater o ganho do capital decorrente de descontos na dívida e da venda de bens e direitos, e a clareza a respeito da não sucessão, do adquirente de ativos, em obrigações de natureza ambiental e anticorrupção -, mas que felizmente ainda podem ser derrubados pelo Congresso.
Mesmo com esses defeitos, as alterações na lei incluíram alguns dos mesmos ingredientes que permitiram que tantas empresas e empresários florescessem no fértil solo falimentar norte-americano. São esses elementos que - espera-se - permitirão que empresários brasileiros, como Walt Disney na década de 1920, se recomponham após um tropeço. E que permitirão que empresas nacionais em dificuldades, como a Marvel na década de 1990, obtenham financiamentos, sejam vendidas e possam se recuperar.
É claro que a mera entrada em vigor da lei não é suficiente para essa mudança tão drástica. Como primeiro passo, é preciso que a lei reformada, com todas as suas deficiências e imperfeições, seja aplicada e interpretada de modo a buscar esses objetivos. As regras certamente precisam ser eficientes para reabilitar devedores e satisfazer credores; mas este não deve ser o Santo Graal a ser perseguido. A insolvência tem, isto sim, que libertar pessoas e ativos, abandonar o passado, e estimular a produção e a circulação de novas riquezas.
*Paulo Fernando Campana Filho é sócio da área de Insolvência e Reestruturação do Veirano Advogados
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