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Uma nota sinistra e inconveniente

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Por Luiz Felipe da Rocha Azevedo Panelli
Atualização:

Luiz Felipe da Rocha Azevedo Panelli. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

As Forças Armadas publicaram, em 11 de novembro, uma nota às instituições e ao povo brasileiro em que se dizem "sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história". No mais, reafirmam seu compromisso com a liberdade do povo.

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O teor da nota pode parecer inócuo, mas uma leitura mais atenta revela aspectos muito preocupantes. O uso do termo "moderadoras" não parece ter sido acidental. Durante o Império tínhamos um Poder Moderador, que era exercido pelo Imperador. O art. 98 da Constituição de 1824 dizia que tal Poder era "chave de toda a organização política" e servia para que o Imperador velasse "sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos".

A República deveria ter enterrado o Poder Moderador. Como sabemos, porém, o período republicano foi marcado por forte presença militar na política, que só terminou com o início da ordem constitucional de 1988. Desde então, as Forças Armadas passaram a cumprir seu papel constitucional e só agir quando autorizadas pelos Poderes Constituídos.

Recentemente, porém, dois fatos inusitados trouxeram à baila a ideia de que as Forças Armadas devem participar ativamente da política: o hábito repugnante do presidente Bolsonaro de insuflar as Forças Armadas contra o Poder Judiciário - o que é crime, frise-se - e a reintrodução da ideia de que, na República, cabe às Forças Armadas o papel de Poder Moderador. Esta ideia - que não encontra qualquer fundamento no texto constitucional - foi defendida pelo professor Ives Gandra que, apesar de ser um jurista dos mais eminentes, ter prestado valiosos serviços à sociedade brasileira e ter convicções democráticas, parece que não se atentou às consequências que dela poderiam advir.

É verdade que o professor Gandra nunca defendeu que as Forças Armadas usassem um suposto Poder Moderador para romper a ordem democrática. Ocorre que passou-se a circular uma versão simplista e deturpada da teoria, que autorizaria que as Forças Armadas agissem como Poder Moderador nos mesmos termos do Imperador quando da vigência da Constituição de 1824.

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A nota das Forças Armadas parece endossar a ideia de que a elas cabe a supervisão dos Poderes Constituídos. Os signatários afirmam, em implícita (mas clara) defesa dos manifestantes que bloquearam estradas, que a lei determina que a manifestação não constitui crime. Ocorre que cabe ao Poder Judiciário - e não às Forças Armadas, evidentemente - dizer se um ato é criminoso. Pior: a nota termina dizendo que as Forças Armadas permanecem vigilantes e atentas. Quem elas vigiam, afinal? Os Poderes Constituídos?

Chegou o momento de caminharmos para uma normalização das relações institucionais, indevidamente tensionadas pelo presidente Bolsonaro. Para que isto ocorra, todos os atores institucionais precisarão se conter. O novo governo precisará entender que a oposição a ele é legítima (lembremos que o PT sempre demonizou a oposição aos seus governos), o presidente Bolsonaro precisa entender que foi legitimamente derrotado em eleições limpas e regulares, o Supremo Tribunal Federal deve exercer uma contenção para não invadir a competência de outros Poderes (o chamado "ativismo judicial") e cidadãos descontentes com o resultado das eleições devem entender que a vocalização de sua insatisfação é legítima, mas que bloquear estradas, pôr em risco a segurança das pessoas ou pedir uma intervenção militar é inadmissível em um Estado de Direito.

No momento em que mais precisamos de pacificação e normalização, a nota das Forças Armadas é completamente inadequada. Não há nada no texto constitucional que as coloque como tutoras dos Poderes Constituídos. Se isto não está claro, reformemos o texto da Constituição para extirpar qualquer dúvida interpretativa. E extirpemos também qualquer possibilidade de ruptura com a ordem constitucional.

*Luiz Felipe da Rocha Azevedo Panelli é advogado e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP

 
 
 
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