Ressurge novamente o assunto a respeito da extinção da saída temporária, motivada principalmente pela morte do policial militar Sargento Roger Dias da Cunha durante a chamada “saidinha de Natal” por um reeducando em gozo do benefício[1].
É sempre muito trágico quando isso ocorre e não queremos diminuir a situação amplamente divulgada pela mídia. Pelo contrário, devemos discutir onde é que erramos e identificar a raiz do problema, porque, certamente, há outros fatores que influenciam neste e em outros episódios trágicos.
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O Projeto de Lei 2.253, de autoria do deputado federal Pedro Paulo (MDB-RJ), que tem como relator Flávio Bolsonaro e que visa abolir a saída temporária de presos, não se mostra eficaz para atender – verdadeiramente - aos anseios sociais, que, embora possa ser interpretado superficialmente como um brado pela extinção a qualquer custo do convívio com pessoas apontadas como causadoras de violência, na realidade, trata-se de um clamor pelo fim de um Estado de Violência.
Aprovado pelo Senado no dia 21 de fevereiro de 2024 com algumas alterações, o texto agora será modificado para que o instituto seja aplicado apenas ao apenado que esteja inscrito em curso profissionalizante ou ensino médio e superior
É bem conveniente defender uma proposta de lei que restringe direitos ao apenado diante de um caso midiático, trazendo no discurso populista a justificativa da redução da criminalidade sem nenhum estudo empírico sério, com o claro intuito de angariar votos e alianças políticas.
Chega a ser contraditório esse tipo de discurso em termos práticos: quer se combater a criminalidade permitindo a permanência ainda maior do apenado no cárcere.
Já sabemos que o cárcere não ressocializa, que nele há facções e o ambiente serve como convite a novos integrantes. Nesse sentido, pensamos que o benefício da saída temporária serve como incentivo a pessoa presa para não se mancomunar com esses grupos criminosos, mantendo, assim, o bom comportamento que se exige durante o cumprimento de pena.
Além do mais, na prática, muitos apenados que possuem direito ao regime semiaberto, cumprem, na verdade, em regime fechado em razão da precariedade do sistema penitenciário, tema já discutido na ADPF 347 em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema carcerário, não sendo, a superlotação, apenas o único problema encontrado nas prisões.
Não sem razão, Foucault qualificava a prisão como “instituição da morte”, “a prisão não é alternativa à morte, ela carrega a morte com ela. Um mesmo fio condutor corre ao longo dessa instituição penal que deveria aplicar a lei, mas que, na verdade, a suspende: uma vez ultrapassadas as portas da prisão, reinam o arbitrário, a ameaça, a chantagem, os golpes. (...) é de vida ou de morte, não de correção, que se trata nas prisões.” [2]
Pois bem, não se combate criminalidade encarcerando mais pessoas, extinguindo ou suprimindo direitos que permitem minimamente alguém, aos poucos, ir retornando ao convívio social.
Em dados divulgados no ano passado pela Secretaria Penal de Políticas Penais (SENAPPEN), a população prisional em 30 de junho de 2023 eram de 644.305 nas unidades prisionais estaduais do país[3]. Desse número, 118.328 estariam no semiaberto, logo, teriam direito a saída temporária em determinados períodos ao longo do ano. No Estado de São Paulo, havia um total de 195.757 presos, sendo que 44.072 estariam no semiaberto.
Isto é, o benefício, seria uma forma, também, de desafogar o sistema em alguns períodos do ano. Ademais, dos números de pessoas que estariam no regime semiaberto e que teriam direito a saída temporária, nem todos acabam se beneficiando, considerando que precisam cumprir com outros requisitos como por exemplo, bom comportamento no estabelecimento penitenciário[4], avaliado pela diretoria do presídio que passaria por um promotor de justiça e por um juiz a cargo da execução penal, portanto, há uma filtragem nos casos que são considerados aptos ou não a usufruírem desse benefício.
Pode-se pensar que o número de pessoas a que tem direito a saída temporária seja enorme e que, portanto, a avaliação feita a cada caso despenderia recursos e tempo do sistema justiça criminal como um todo. De fato, isso é verdade, mas então que se melhore as condições das instituições e de seus agentes, responsáveis por fazerem essa filtragem, e que se mude a mentalidade sobre a punição, afinal, punir é necessário, é civilizatório, desde que na forma da lei.
Infelizmente vemos os nossos representantes discursando sobre o combate a criminalidade, recrudescimento das penas, extinção de mecanismos eficazes para reintegrar o indivíduo a sociedade, sendo que o problema real em torno do sistema carcerário talvez seja o oposto disso. É necessário mudar o discurso, mas justamente porque o oposto não “chama voto”, é desinteressante a boa parte da sociedade e não gera recursos. É óbvio, é o errado que deu certo para o discurso político.
A saída temporária, como um todo, tem um papel importante na ressocialização, considerando que uma das maiores dificuldades do encarcerado, que inevitavelmente será libertado, é retomar a vida em sociedade, mas de nada adianta este benefício sem a destinação de recursos apropriados e com uma população em decadência educacional e psicológica.
Feitas essas considerações, persiste o questionamento que leva o título do texto: Uma saída, temporária, para quê e para quem?
Concluímos que o discurso em torno dessa temática extremamente sensível, não se mostra, em nenhum aspecto, uma solução para qualquer dos agentes envolvidos no âmbito da justiça criminal.
Os projetos legislativos, revestidos de medidas eleitoreiras, não se apresentam como uma solução eficaz e permanente – quiçá temporária - para os problemas da sociedade civil, vez que, esta, é quem recebe o agente encarcerado, não ressocializado e sem perspectiva de ser inserido na sociedade e em seu círculo familiar.
Assim, o Projeto Legislativo caminha no sentido contrário ao de um processo civilizatório e eficaz, escancarando o populismo penal alinhado ao projeto eleitoral que ilude certa parcela da população, a qual tende a ignorar a realidade de que o Estado Brasileiro possui um sistema prisional que ignora direitos fundamentais, patrocinando um cenário em desacordo com as normas previstas na Constituição Federal de 1988, tornando cada vez mais impossível a ressocialização.
[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/02/06/comissao-do-senado-aprova-projeto-que-acaba-com-saida-temporaria-de-presos-em-feriados.ghtml
[2] FOUCAULT. Michel. “Alternativas” à prisão. Pg. 55
[3]https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYzZlNWQ2OGUtYmMyNi00ZGVkLTgwODgtYjVkMWI0ODhmOGUwIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9
[4] Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos:
I - Comportamento adequado; II - cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente; III - compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.
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