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Unidades de Conservação só podem ser reduzidas por lei: entenda a ADI da Ferrogrão

Decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de suspender a tramitação do projeto da ferrovia está correta do ponto de vista jurídico

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Por Pedro Henrique Reschke
Atualização:

O projeto de instalação da ferrovia EF-170, a Ferrogrão, foi recentemente suspenso pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes por uma decisão liminar proferida na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº. 6553. Os tempos de crise institucional hoje vividos pelo Brasil podem inspirar uma leitura política dessa decisão, mas seu embasamento jurídico é muito sólido. O que segue é uma breve análise do problema pela perspectiva do direito positivo.

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Inicialmente, vale um rápido contexto. O traçado previsto para a Ferrogrão passa por dentro da área hoje ocupada pelo Parque Nacional do Jamanxim, uma Unidade de Conservação (UC) localizada no estado do Pará. Para viabilizar o projeto é preciso alterar os limites do parque.

Com esse fim, o Parque Nacional do Jamanxim teve seus limites alterados pela Medida Provisória nº 758/2016, depois convertida na Lei Federal n. 13.452/2017. A relação da MP com a Ferrogrão não é segredo - pelo contrário, o projeto está expressamente mencionado no texto da norma (art. 2º, § 1º: "A área de que trata o caput é destinada aos leitos e às faixas de domínio da EF-170 e da BR-163.").

Acontece que a Constituição exige, para a alteração dos limites de uma unidade de conservação, lei em sentido estrito. Reduzir uma UC por meio de medida provisória é inconstitucional. Com base nesse argumento, a MP e a lei dela decorrentes foram impugnadas no STF, na ADI 6553. O ministro Alexandre Moraes proferiu decisão liminar suspendendo o trâmite dos projetos de instalação da Ferrogrão, com o objetivo de evitar que o parque sofresse um dano irreversível.

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Pedro Henrique Reschke. Foto: acervo pessoal

O que são unidades de conservação?

As UCs são espaços territoriais designados especificamente pelo Poder Público para receber proteção especial. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) está previsto na lei 9.585/2000, com embasamento constitucional no art. 225, § 1º, I, II, III e VI.

A instituição de uma unidade de conservação exige ato específico de criação, emanado do Poder Público. Essa previsão vem do art. 22 da lei do SNUC, que não faz exigência quanto à natureza desse ato. Pode ser uma lei ou um decreto, desde que sejam respeitados os requisitos quanto à sua forma (previstos no decreto 4.340, que regulamenta a lei do SNUC), e que ele seja precedido de estudos técnicos e consulta pública (art. 22, § 2º, da lei do SNUC).

Por que não se pode reduzir unidade de conservação por Medida Provisória?

Essa é a questão central enfrentada na ADI 6553. A matéria já foi enfrentada pelo STF em outras ocasiões. Importante e recente precedente é a ADI 4717 (j. em 05/04/2018, rel. Min. Carmen Lúcia), que julgava a constitucionalidade de MP que havia reduzido o tamanho de diversos parques nacionais na Amazônia. Naquele caso, o resultado (unânime) foi o reconhecimento da inconstitucionalidade da MP.

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Uma vez criada a unidade de conservação, porém, ela só pode ser suprimida ou ter seus limites alterados por meio de lei específica. Trata-se de previsão expressa do texto constitucional: o art. 225, § 1º, III, da Constituição, outorga ao Poder Público a competência para definir os espaços territoriais especialmente protegidos, "sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei".

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Tal previsão é regulamentada pelo art. 22, § 7º, da lei do SNUC, dispositivo que, diferentemente do caput, qualifica ato do Poder Público: para desafetar ou reduzir os limites da UC, é preciso que seja lei. Essa discrepância não é acidental. Isso fica muito claro pela organização dos dispositivos:

o caput do art. 22 diz que a criação da UC pode se dar por ato do Poder Público, sem exigir lei; para ampliar UCs já existentes, o § 6º exige instrumento normativo do mesmo grau hierárquico daquele usado para a criação (UC criada por decreto pode ser ampliada por decreto; UC criada por lei só pode ser ampliada por lei); para a redução dos limites de uma UC, o § 7º exige lei específica.

Assim, é mais fácil criar unidades de conservação do que extingui-las ou reduzi-las. Trata-se de uma escolha política do legislador, que optou por minimizar barreiras burocráticas para o gestor que pretende aumentar a proteção ambiental, e maximizar as barreiras para quem pretenda diminuí-la.

Isso tudo por aplicação da regra da reserva legal, que só é satisfeita quando se fala em lei em sentido formal, com todo o processo legislativo comum ordinário que lhe antecede, com ampla participação popular e extenso debate parlamentar. Isso é especialmente relevante quando se fala de norma que altera ou diminui proteção ambiental - por isso a exigência de lei para reduzir a UC.

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Além disso, é preciso lembrar que o uso de MPs deve ser restrito e excepcional, aplicada única e exclusivamente às situações em que há urgência e relevância. Esses requisitos não se costumam fazer presentes

Se a MP virar lei, o problema está resolvido?

O principal argumento que vem sendo levantado em defesa da redução dos limites do Parque do Jamanxim é o fato de que a MP foi convertida em lei, o que eliminaria qualquer crítica quanto à escolha do instrumento normativo.

Esse argumento não procede. Embora a Constituição não estabeleça diferenças formais entre a lei ordinária promulgada como tal e aquela que resulta da conversão de uma MP, há grandes diferenças entre os ritos de cada um dos processos legislativos.

Não cabe entrar em detalhes aqui, mas basta ressaltar que a lei resultante da conversão de MP não passa pelas Comissões permanentes do Congresso Nacional, por exemplo. Assim, o processo legislativo da lei ordinária convida o debate parlamentar e participação social necessários para matéria dessa relevância, e o faz de maneira muito mais densa do que o processo de conversão da MP em lei.

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Mas há outro argumento, ainda mais importante: a precariedade das Medidas Provisórias não combina com a definitividade do dano ambiental.

Aceitar a alteração de UC por MP é incentivar gestores públicos a fazê-lo quando politicamente conveniente, confiando que eventual conversão em lei os absolveria de todos os pecados. Mas, se essa conversão não acontecer, não é difícil imaginar a possibilidade da ocorrência de dano ambiental irreversível. Sob essa ótica, a medida provisória se tornaria uma espécie de antecipação da tutela no processo legislativo: devasta-se a UC agora, para só daqui a 60 dias saber com certeza se o Congresso chancelará ou não a ilegalidade. Evidentemente, isso é inaceitável. Por isso, a alteração da UC deve ocorrer por lei ordinária, não por lei resultante da conversão de MP.

Conclusão: segurança jurídica é respeitar a regra do jogo

Entre as críticas direcionadas à decisão do ministro Alexandre de Moraes está a alegação de que a liminar geraria insegurança jurídica, por suspender lei positivada. A conclusão adequada, tudo indica, é diametralmente oposta: a insegurança jurídica surge quando interesses políticos imediatos fazem com que sejam tomados atalhos para questões jurídicas importantes, em detrimento dos caminhos indicados pela Constituição.

*Pedro Henrique Reschke é Advogado. Mestre em Direito pela UFSC. Doutorando em Direito Processual Civil pela USP. Pós-Graduando em Meio Ambiente e Sustentabilidade pela FGV.

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