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Opinião | Vale a versão, não o fato

Sempre houve a falsidade, a mentira, a inverdade. E, uma vez disseminada, os esclarecimentos, os desmentidos ou as explicações não desfazem a concepção de verdade que já impregnou a consciência insuscetível à retratação

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convidado
Por José Renato Nalini

Na era das fake news, muitos enxergam esse fenômeno como se fora novidade. Não é. Sempre houve a falsidade, a mentira, a inverdade. E uma vez disseminada, os esclarecimentos, os desmentidos ou as explicações não desfazem a concepção de verdade que já impregnou a consciência insuscetível à retratação.

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Isso acontece em todos os setores e a História está prenhe de episódios que servem de ilustração para convencer quem duvide.

Um deles envolve o célebre Conde Afonso Celso que, a 9 de setembro de 1926 – há quase um século – numa entrevista concedida a “O País”, quis recordar alguns de seus companheiros de estudo na Velha e Sempre Nova Academia de Direito do Largo de São Francisco.

Mencionou Afonso Pena, Silva Jardim, Pedro Lessa, Raimundo Correia, Lúcio de Mendonça, Augusto de Lima e Leopoldo Bulhões, entre outros. É sabido que o folclore da primeira Faculdade de Direito do Brasil, prestes a completar seus duzentos anos, é rico e saboroso. Assim, a propósito de Afonso Pena, que chegou a ser Presidente do Brasil, o Conde Afonso Celso a ele atribuiu, ao tempo em que eles conviviam na chamada “República dos Estouvados”, haver escrito os versos que seguem: “Acusam-me de místico/Mas eu sou cabalístico/Querem que eu participe do/ Oráculo Simbólico/ Mas eu sou parabólico/ Sou paralelepípedo”.

Poucos dias após publicada a entrevista, Viriato Correia, em artigo no “Jornal do Brasil”, desmentiu Afonso Celso. Na verdade, havia sido Manuel Duarte, seu companheiro na redação da “Folha do Dia”, quem primeiro atribuía ao político mineiro, como pilhéria até de mau gosto, a autoria dos versos malucos.

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Mas vejam como a história rendeu. Sem se dar conta disso, o Professor Spencer Vampré, respeitado historiador das Arcadas, transcreveu os versos e manteve a versão de que eles haviam sido produzidos por Afonso Pena, em suas reminiscências sobre a Academia de São Paulo. Obra muito lida e muito comentada em todo o Brasil.

Foi baseado nessas memórias que o Conde Afonso Celso apontou Afonso Pena como o autor da poesia que, segundo o entrevistado, havia feito enorme sucesso. Seu testemunho pessoal era muito abalizado. Afinal, além de Presidente Perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Conde Afonso Celso era um homem respeitadíssimo, veraz e de alta correção.

O esclarecimento de Viriato Correia corrigiu o equívoco e restabeleceu a verdade. Mas mesmo hoje, em nossos dias, Afonso Pena ainda não se livrou dessa paternidade literária produzida enquanto residia numa polêmica “República dos Estouvados”.

Essas tiradas não têm dono. Circulam, depois de narradas, ao sabor do acaso. Não se elimine as mutações em sua trajetória, pois “quem conta um conto, aumenta um ponto”. Vivem na memória do povo, que as prestigia e passa adiante, quando são inteligentes. Têm o mesmo destino que era procurado pela fidalga castelhana de quem disse Dom Francisco Manuel de Melo, na “Carta de Guia de Casados”, que ao entrar no seu carro, invariavelmente ordenava ao motorista: “Leve-me onde houver mais gente!”.

Quanto ao poema cuja autoria então resta ignorada, fez-me lembrar algo que meu querido amigo, mestre e confrade da Academia Paulista de Letras, o Professor Eros Roberto Grau, prontamente respondeu, quando alguém comentou que um de seus livros tinha sabor erótico. Retrucou com o sutil espírito de humor que o torna um dos perfis intelectuais mais instigantes do mundo (não só do Brasil; é personalidade requisitada em Paris, onde residiu e onde lecionou). Disse então, textualmente: - “Dizem que meu livro é erótico porque me chamo Eros! Se me chamasse Hermes, diriam que meu livro seria hermético”.

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Só quem convive com o festejado Professor da São Francisco, autor de inúmeros e disputados livros, que chegou ao Supremo Tribunal Federal e lá deixou o rastro de sua glória, pode aquilatar a sua qualidade humana. É um ser extraordinário, pessoa do mais elevado quilate.

Privar de sua amizade é continuar a aprender. Assim como suas lições são eternas, reiteradas em todas as teses e dissertações elaboradas nas Universidades brasileiras e francesas.

A melhor versão de Eros Grau, para quem o conhece, é ele mesmo, na sua intimidade e na generosidade com que partilha sua sapiência.

Convidado deste artigo

Foto do autor José Renato Nalini
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José Renato Nalini
Reitor da UNIREGISTRAL, docente da pós-graduação da UNINOVE e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Werther Santana/Estadão
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