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Opinião | A culpa é do útero e da histeria

Quando uma mulher é desacreditada ou desqualificada ao denunciar abusos, ela se vê forçada ao silêncio, muitas vezes acreditando que a violência sofrida é, de algum modo, “culpa” dela mesma. Esse processo de vitimização e autoculpabilização gera um ciclo de impunidade, pois o agressor sente-se legitimado

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convidado
Por Raquel Gallinati
Atualização:

Estamos em novembro, um mês marcado pela campanha dos “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, que começou oficialmente no Brasil no dia 20.

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Mulheres enfrentam diversas formas de violência, que muitas vezes são justificadas, ignoradas ou até normalizadas pela sociedade. Esses comportamentos são sustentados por estigmas profundos, que colocam as mulheres em uma posição de desvantagem, fazendo com que suas dores e sofrimentos sejam desqualificados ou minimizados.

A análise do papel da cultura na violência contra a mulher é essencial, especialmente quando olhamos para mitos odiosos como o do “útero errante” e a histeria ser uma doença decorrente do útero. Essas ideias, que surgiram na antiguidade e ainda ecoam na sociedade moderna, ajudam a compreender as raízes da invisibilidade que cerca a violência contra as mulheres e os impactos criminais.

“Histeria”, termo originado do grego hystéra (útero), deu origem a uma visão misógina e irracional de que toda mulher, por possuir um útero, estaria propensa a um estado patológico de desequilíbrio mental. Emoções intensas, medos e ansiedade eram tratados como sintomas de uma “doença feminina”, como se o útero fosse a causa. Esse conceito ainda persiste em nossa cultura: a dor e o medo da mulher são desqualificados como “exagero” ou “falta de controle emocional”, transformando o útero como sinônimo de desequilíbrio e falta de controle, retratando as mulheres como seres irracionais e descontroladas.

Tais estereótipos resistem e persistem. Ao longo dos séculos, essa construção deu origem ao estigma da “mulher histérica” – para invalidar os sentimentos femininos e reduzir suas dores e medos a algo exagerado ou descontrolado. Essa percepção afetou diretamente o tratamento das vítimas de violência, tanto nas esferas sociais quanto criminais.

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Em 2024, o Brasil ainda registra índices assustadores de violência contra a mulher. Apesar dos avanços na legislação, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, a persistência de estereótipos históricos impacta a forma como a sociedade enxerga as mulheres. Muitas vítimas, ao relatarem agressões, ainda enfrentam olhares de descrédito e são confrontadas com uma cultura que, em vez de protegê-las, frequentemente as julga, questiona ou culpa.

Essa visão leva a uma série de consequências graves. Quando uma mulher é desacreditada ou desqualificada ao denunciar abusos, ela se vê forçada ao silêncio, muitas vezes acreditando que a violência sofrida é, de algum modo, “culpa” dela mesma. Esse processo de vitimização e autoculpabilização gera um ciclo de impunidade, pois o agressor sente-se legitimado. Para cada mulher que se cala por medo de ser rotulada de “desequilibrada” ou “histérica”, a violência se perpetua, sem freios.

Nossa luta enquanto sociedade é assegurar que toda mulher tenha voz, de modo que o sistema de justiça trabalhe verdadeiramente para as defender. Combater o “útero histericamente errante” é interromper ciclos de violência.

Mais um novembro chega, mas com a obrigação de agir: a violência contra a mulher deve ser tratada como uma urgência global, exigindo de cada um de nós uma transformação profunda e um compromisso real com a mudança.

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Raquel Gallinati
Delegada de polícia, mestre em Filosofia e pós-graduada em Ciências Penais, Direito de Polícia Judiciária e Processo Penal. É secretária de Segurança Pública de Santos e diretora da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) do Brasil. Foto: Arquivo pessoal
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