Nos últimos meses, diversas notícias destacaram os números alarmantes divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública[1], revelando um aumento significativo nos índices de violência contra as mulheres no Brasil.
Entre os dados mais preocupantes, está o aumento de 91,5% nos crimes sexuais, como o estupro, além deum aumento nos números de feminicídios – consumados (0,8%) e tentados (9,2%), com 90% dos agressores sendo homens.
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Houve também um aumento de 9,8% nos registros de agressões no ambiente doméstico, 34,5% em perseguições, e 33,8% em violência psicológica. Como resposta a esses números, foram solicitadas 540.255 medidas protetivas no último ano, representando um aumento de 26,7%. O crescimento expressivo desses dados demonstra a urgente necessidade de aprimoramento das políticas públicas destinadas à proteção das mulheres no país.
É evidente que os dados são alarmantes e refletem uma realidade distante da otimista. Esse retrato da sociedade deveria instigar a comunidade e, especialmente, as autoridades públicas a agirem para mudar o cenário de violência em que as mulheres estão inseridas. Afinal, os números expressivos de violência contra as mulheres demonstram as reiteradas violações aos direitos desse grupo.
Apesar da gravidade dos índices de violência destacados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, há uma forma de violência menos debatida e que também vem crescendo: a violência doméstica contra mulheres após jogos de futebol.
É frequente a associação de casos de violência ao esporte, especialmente ao futebol, que é uma paixão nacional e parte integrante da cultura brasileira, sendo alvo de muitas críticas relacionadas às condutas de torcedores e jogadores. Normalmente, esses eventos são noticiados em um contexto de rivalidade ou desordem, ligados à disputa esportiva, mas a relação entre futebol e violência doméstica ainda surpreende muitos.
O aumento do consumo de álcool e os altos níveis de emoção associados a grandes partidas de futebol podem intensificar a gravidade e a frequência de situações de violência doméstica já existentes, conforme alerta a organização britânica Women’s Aid, que esclarece que o futebol, por si só, não “causa” violência doméstica.[2]
Embora inédita para muitos, a prática de violência doméstica contra mulheres após partidas de futebol não é nova nem é uma exclusividade brasileira e tampouco acontece apenas entre as torcidas organizadas.
Na Inglaterra, por exemplo, estudos da Lancaster University mostram que houve um aumento médio de 26% na violência doméstica no condado de Lancashire nos dias em que a Inglaterra ganhou ou empatou, e de 38% quando a seleção perdeu, durante as Copas do Mundo de 2006, 2008 e 2010, segundo análises realizadas entre 2012 e 2013.[3]
Nos Estados Unidos, a final do campeonato de futebol americano é um dos piores dias em termos de registros de violência contra meninas e mulheres, com um aumento de 40% nos casos, conforme pesquisa de 1993.[4]
Outro exemplo relevante é a pesquisa da LSE, publicada em 2021, que trouxe dados importantes sobre o consumo excessivo de álcool durante os jogos de determinados times ingleses e a potencial relação com o aumento dos episódios de violência contra as mulheres.
Esses dados indicam que a violência relacionada ao futebol não é exclusividade brasileira e ocorre em diversos contextos culturais. No Brasil, uma pesquisa encomendada pelo Instituto Avon ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública analisa a relação entre o esporte e as violências contra meninas e mulheres, baseando-se em dados de jogos do Campeonato Brasileiro da Série A entre 2015 e 2018, em cinco capitais: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre.[5]
A pesquisa revela uma relação significativa entre jogos de futebol e o aumento nos registros de violência doméstica. Segundo Beatriz Accioly, coordenadora de Pesquisa e Impacto do Instituto Avon, a pesquisa não sugere que o futebol seja a causa direta, mas que ele pode funcionar como um “catalisador” das desigualdades de poder entre homens e mulheres, ao interagir com valores de masculinidade, competitividade, rivalidade e frustração.
Entre os registros de lesão corporal dolosa, o aumento em dias de jogos dos times das regiões observadas é de 20,8%. Já nos dias em que o clube é o mandante da partida e joga na própria cidade e estádio, o levantamento identificou o aumento de 25,9% de registros policiais. O estudo “Violência Contra Mulheres e o Futebol” também revela que, em sua maioria, os responsáveis pelas violências são os companheiros e ex-companheiros.
É importante ressaltar que a violência não surge apenas em função de uma derrota no futebol, mas reflete uma relação previamente marcada por abusos. Muitas mulheres têm dificuldade em pedir ajuda e reconhecer que estão em uma situação de violência, devido à socialização em uma sociedade que perpetua desigualdades de gênero.
Desde a infância, somos ensinados que a prática esportiva deve promover a educação, a integridade e a inclusão – princípios estabelecidos pela Lei Geral do Esporte (Lei n.º 14.597/23). No entanto, esses princípios muitas vezes não se materializam na realidade.
O esporte tem o potencial de transformação social e não se pode ignorar a importância da sua vitrine para o fortalecimento de bandeiras importantes – a exemplo da luta antirracista.
Nesse cenário, além da maior ocupação dos espaços esportivos e do fortalecimento das ligas femininas, que têm, inegavelmente, ganhado impulso nos últimos anos, destaca-se o exemplo notável do Orlando Pride, que conta com cinco jogadoras brasileiras, incluindo, Marta, eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo. Também merece menção a Seleção Brasileira Feminina, que conquistou a medalha de prata no futebol feminino nas Olimpíadas de 2024 em Paris, alcançando seu melhor resultado em 16 (dezesseis) anos.
A conquista de maior visibilidade, assim como o desempenho em campeonatos internacionais, serve como um símbolo de ascensão e resistência, inspirando outras mulheres e meninas a desafiarem os padrões estabelecidos.
Por essa razão, convém usar dessa visibilidade, também, para disseminar informações sobre os direitos das mulheres. Apesar das dificuldades, é fundamental destacar os mecanismos legais já existentes, como a Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/06), que completou 18 anos neste mês de agosto, por meio da qual se estabeleceu um importante sistema de proteção para mulheres vítimas de violência doméstica.
As medidas protetivas de urgência têm um papel especial, pois garantem o afastamento do agressor do lar e outras restrições necessárias para proteger a vítima. Além disso, a lei prevê atendimento especializado e assistência judiciária para mulheres em situação de vulnerabilidade, proporcionando meios de romper o ciclo de violência e manter sua integridade.
Portanto, é necessário propagar esses direitos. Não podemos naturalizar a violência ou justificá-la com desculpas, como a frustração de um resultado esportivo. Às autoridades incumbe, com o respeito ao devido processo e às garantias fundamentais, sempre indispensáveis, divulgar a lei e respeitá-la, cientes da realidade que há por trás do Direito, e agir para promover uma sociedade mais justa e segura para todas as mulheres.
[1] https://publicacoes.forumseguranca.org.br/items/f62c4196-561d-452d-a2a8-9d33d1163af0
[3] BRIMICOMBE, A. AND CAFÉ, R. (2012) Beware, win or lose. Domestic Violence and the world cup. Significance. The Royal Statistical Society.
[4] HOHLER, B. (1993, February 2). Super Bowl Gaffe. The Boston Globe, p. 1.
[5] https://institutoavon.org.br/conteudo-violencia-contra-as-mulheres/
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