Bolívar Lamounier: ‘A sociedade hoje está dividida de alto a baixo’

Cientista político afirma que atual polarização no País não tem precedentes em nossa história

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

O cientista político Bolívar Lamonier afirma que divisão atual da sociedade não tem precedente em nossa história. “Pode hoje dizer, sem medo de errar que esta crise é muito mais perigosa e pode levar a um período razoavelmente longo de conflito.” Ele conclui que o País está diante de uma segunda década perdida. O autor de Tribunos, profetas e sacerdotes imagina o seguinte cenário: “crime organizado, endemias, uma política totalmente desorientada”, onde ninguém mais diz “coisa com coisa”. Ele afirma que o PSDB desapareceu como partido em um País que não tem partidos, mas siglas feita por meia dúzia de pessoas.

“O problema partidário nosso é dramático.” Diante da opção entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno, ele diz o petista ainda pode com alguma credibilidade desejar desempenhar o papel de pacificador do país, algo que Bolsonaro não pode e nem mesmo deseja. “Ele (Lula) é um populista clássico da América Latina, com uma diferença muito positiva: ele é esperto, ele aprendeu a falar coisas, como a palavra ‘tergiversação’ ou a expressão ‘ou seja’.” Falta ao País não só quem o pense, mas até mesmo uma elite que sirva de anteparo quando a democracia e as instituições são ameaçadas. “O que vamos ter, a partir do segundo turno, são duas massas antagônicas muito fortes.”

O cientista político Bolívar Lamonier  Foto: Alex Silva/Estadão

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Nesse quadro, pensa o cientista político, a vida vai piorar bastante. Cético? “Cético não, eu estou desesperado.” Apesar do pessimismo, Lamounier reafirma a convicção na defesa da democracia do liberalismo. “Nasci democrata liberal e espero morrer democrata liberal, mas não consigo entender como possa funcionar um País sem, pelo menos, alguns partidos sérios.”

Leia, a seguir, a íntegra de sua entrevista.

O senhor disse que não estamos diante de uma polarização eleitoral, mas de uma terceira onda de desavenças, só comparável ao período do getulismo/antigetulismo nos anos 1950 e a dos anos entre 1961 e 1964, da crise da renúncia ao golpe. Por que o senhor vê dessa forma?

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Em primeiro lugar porque esta crise atual me parece muito mais grave. Naquela época, a sociedade estava dividida no plano das elites e das classes altas. Não havia tanto rancor na sociedade. Hoje, a condutividade atmosférica é impressionante. Tem famílias que não se falam mais por razões políticas, dentro de casa. Parece-me fora de dúvida de que a sociedade está dividida de alto a baixo. Qual sociedade? Uma sociedade 90% urbana. Naquela época não era. Era meio a meio. A divisão da sociedade era intensa, havia polarização do Lacerda contra o Getúlio, mas aquilo era do meio urbano. No interior ninguém tinha notícia disso. Não havia programa eleitoral na televisão. Era outro mundo. Pode-se hoje dizer, sem medo de errar que esta crise é muito mais perigosa e pode levar a um período razoavelmente longo de conflitos e é a nossa segunda década perdida. Tivemos a primeira dos anos 1980, causada por razões econômicas, a política econômica do general (Ernesto) Geisel afundou o País. Tivemos 33 anos seguidos de altas inflações, até 1994. Mas não havia essa violência no ar. Estamos perdendo a segunda década, hoje. Significa, primeiro perder o nosso melhor ativo: apesar da desigualdade social, nós não tínhamos grandes violências. Hoje, temos a violência do crime organizado e um começo de violência política se esboçando. Se queimarmos esse ativo, aí a coisa ficará feia de verdade.

Essa é a singularidade desse momento?

É a possibilidade de um período longo de conflitos de vários tipos por entrada em cena do conflito político sério. Queira Deus que não haja violência. Mas, política conflituosa, nós vamos ter.

Tem dois fenômenos que um próximo censo pode mostrar: o aumento do tamanho dos evangélicos e a força do agronegócio. Como isso se relaciona com as elites, que sempre foram urbanas?

Exato. Conflito religioso nunca tivemos em nossa história. Esse é um fenômeno recente. E devemos ter em mente que nem todo evangélico é rancoroso. Mas que há um certo antagonismo entre uma parte do evangelismo e do catolicismo. Evidente que há. O crescimento muito rápido do evangelismo e, principalmente, o fato de ele buscar poder político e bancada na Câmara, introduz um elemento novo, que pode piorar essa situação. Mas o que me preocupa mais é que o Brasil não se enxerga mais. Ele não tem um espelho para se ver. Estamos falando de coisas que já deviam estar perdidas no passado, há muito tempo. A nossa média de crescimento anual por habitante é de 2,5%. Recentemente, o professor Edmar Bacha revisou esses números desde 1900 e constatou que é isso mesmo. Crescendo nesse ritmo, vamos levar 28 anos para dobrar essa renda. Considerando que, hoje, estamos com US$ 7,5 mil de renda por habitante, para chegar a 15 mil dólares valos levar 28 anos, o que é ainda bastante abaixo de Portugal. Então, imagine o seguinte cenário: crime organizado, endemias, uma política totalmente desorientada, ninguém mais diz coisa com coisa. Nesse quadro, a vida vai piorar bastante.

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O senhor acredita que a democracia liberal não conseguirá cumprir a promessa feita no pós-guerra de que a geração futura teria uma vida melhor do que a geração atual? A democracia liberal perde legitimidade junto a camadas da população que não conseguem enxergar nela um instrumento de melhora de suas condições de vida?

Sim, perde. Disso, eu acho que não há dúvida: a próxima geração, a menos que se adestre e se prepare com muito mais afinco para trabalhar, vai viver pior. E isso já está acontecendo. Há 50 anos, a tecnologia que os trabalhadores médios precisavam usar era banal. Hoje não é banal, não. Hoje, precisa de muito trabalho. Agora, veja bem, além desse período todo que vamos levar para dobrar a renda, o que eu vejo é que o Brasil não está estagnado, mas andando para trás. O País está em retrocesso, pois a taxa de crescimento do crime organizado é maior do que a da renda per capita. Vou mais longe ainda. O Brasil tem de se convencer de que, talvez, seja impossível um dia a gente chegar ao nível de distribuição de renda de uma França ou de uma Suécia. Mas nós ainda não nos demos conta do que somos e queremos. Discutimos todas as tolices e sandices – e quero mencionar o programa eleitoral gratuito –, menos o ponto central: que País nós temos possibilidade de realizar, a ponto de ter um bem-estar e um nível de paz compatível com o que queremos. O País não precisa alcançar a Dinamarca para viver bem. Nós podemos viver bem desde que nos organizemos melhor.

Nessa análise do sr, a eleição não representa só a consolidação dessa desavença, mas a derrocada do centro, representado pelo PSDB...

O PSDB desapareceu como partido.

O que isso representa. Esse espaço vago que o PSDB ocupou nas últimas três décadas o que representa para o futuro político do País?

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Eu vou te pedir licença para ir direto ao ponto. O Brasil hoje não tem partidos políticos. O Brasil tem 30 siglas. Sigla é uma coisa que meia dúzia de pessoas vai ao tribunal eleitoral e apresenta um documento que recebe um carimbo. E aquilo vira uma sigla.

Inclusive o PT?

Inclusive o PT. O PT é mais partido que os outros, pois se formou a mais tempo e tem um líder populista de uma habilidade extraordinária. O PT vive do Lula e não o contrário. Tanto é que uma grande parte da militância petista é marxista. O Lula nem sabe o que é isso. Ele, provavelmente, não leu nem as três primeiras páginas do Manifesto Comunista. Ele é um populista clássico da América Latina, com uma diferença muito positiva: ele é esperto, ele aprendeu a falar coisas, como a palavra ‘tergiversação’ ou a expressão ‘ou seja’. Ele é liso, como se diz no futebol. E pode, com certa credibilidade, nesse momento, fazer o papel de um possível pacificador do País. Isso tem alguma credibilidade, pois não temos outro líder. Temos uma entressafra de qualidade duvidosa. O Jair Bolsonaro, evidentemente, não se apresenta, não quer e não tem preparação para pacificar o País de jeito algum. Ele quer botar fogo. O problema partidário nosso é dramático. Eu nasci democrata liberal e espero morrer democrata liberal, mas não consigo entender como possa funcionar um País sem, pelo menos, alguns partidos sérios. O MDB? É uma federação de oligarquias.

O senhor está mencionando a dificuldade da questão associativa no país, como Sérgio Buarque de Holanda. Isso ainda é um marco de nossa realidade para entender por que nossa democracia é disfuncional?

Foi bom você lembrar o Sérgio Buarque de Holanda. A minha geração, não sei se a sua, orientou-se, formou-se lendo quatro ou cinco escritores. Todos pensavam a mesma coisa: nosso problema são os grilhões do passado. Nosso problema era Portugal, o latifúndio e a família patriarcal, que impede o desenvolvimento do sentimento de associação; ela é apolítica, daí resultava uma multidão de gente no interior, na agricultura, e uma pequena porção de gente no Rio de Janeiro, que tinha duas capacidades: a de reprimir e a de arrecadar. Com a arrecadação, eles podiam distribuir generosamente oportunidades e recursos para os amigos do rei. É o patrimonialismo. O País era dividido dessa maneira até a Proclamação da República. Estudamos Celso Furtado, Gilberto Freyre e o Victor Nunes Leal. Eles, mais ou menos, dizem a mesma coisa. Mas acho que nos orientarmos por eles hoje é um equívoco. Devemos vê-los como o crepúsculo do pensamento brasileiro, pois, hoje, não vejo ninguém pensando o Brasil a fundo. Vejo os economistas fazendo matemática assustadora, vejo os empresários enfurnados nos escaninhos e a própria CNBB, que era muito ativa, há tempos que não diz nada. Ou seja, nós não temos sequer uma elite. Antigamente, xingava-se muito as elites. O PT não podia passar um dia sem isso. O Brasil não tem elite. Elite é ter recursos. Pobre não é elite, nem presidiário de Pedrinhas. Em segundo lugar, tem de ter uma vocação pública. Elite não tem mais a conotação de aristocracia. Elite hoje em dia, no mundo todo, significa exemplaridade, gente com vocação para o bem público. Para que se realize essa vocação, os ápices de cada pirâmide precisam se comunicar. Sem isso, não se forma uma elite. Quando o grupo de notáveis fez o manifesto de 11 de Agosto, fiquei entusiasmado, mas dez dias depois ninguém mais se lembrava.

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Mas, para haver isso, não seria necessário haver um sentimento de concórdia, de philia, lembrando que o senhor começou a expor a discórdia no País, essa era do rancor e do ressentimento? Isso não paralisa só a democracia, mas também a própria possibilidade de se constituir uma elite no País?

Precisamente. E enfraquece as instituições. Elas estão desmilinguindo. Quando um País tem uma boa estrutura democrática, poderíamos salvá-la se as instituições se mantivessem dignas do respeito e da confiança da população. Quando você não tem isso, você precisa de um muro de arrimo, de uma elite. Pelo menos, as camadas mais ricas precisam estar balizando as ações do poder público para que as ações não se desmilinguem de vez. Isso não está acontecendo A instituição por excelência da democracia, que é o partido político, não existe mais. E o desenvolvimento econômico com taxas pífias, é claro, aumenta a discórdia. Ela, assim, se autoalimenta.

O senhor chegou a classificar os próximos quatro anos como de ‘equilíbrio do terror’. O senhor acha que estamos entrando em uma nova era?

Eu acho, talvez, que essa proposição seja muito arrojada. Mas volto a um ponto. Não temos mais um centro que tenha respeitabilidade e credibilidade. A nova política do Bolsonaro se resumiu a uma maçaroca de deputados, em que não se discerne tendência nenhuma. O que vamos ter, a partir do segundo turno, são duas massas antagônicas, ambas muito fortes. Uma é mais viva e outra quer botar fogo no circo. Bolsonaro, com seu PL, conseguiu 99 deputados. Nosso sistema partidário, ou siglário, continua a fragmentação que sempre foi. O Brasil foi um dos poucos países do mundo no qual cada novo regime constitucional dissolveu os partidos do regime anterior. Partido político tem algumas funções básicas: primeiro identificar e recrutar pessoas com capacidade e integridade para se candidatar a cargos público. Segundo: ordenar, razoavelmente, a pauta do País. Isso não quer dizer fanatismo nem consenso. É impossível você ter um partido político com milhões de votos e todos pensando a mesma coisa. Aí entra o elemento da concórdia e da tolerância. O bê-á-bá da política começa pela tolerância. As pessoas são diferentes e com interesses diversos. Um partido político é um instrumento de equacionar com o mínimo possível de violência essas diferenças que toda sociedade tem.

Hoje todo político está nas redes sociais. O quanto o processo digital embaralhou essa ideia de uma elite se organizar?

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Ela se embaralhou muito antes disso. A revolução veio depois. Ela veio com os militares, que suprimiram os partidos. O PSD cumpria o papel que hoje o MDB não é capaz de cumprir. Já o Partido Trabalhista era o legado do Getúlio, do peleguismo, mas tinha gente boa. O governo João Goulart, que foi um péssimo governo, tinha como ministro o Franco Montoro, o Almino Afonso; tinha gente boa. Na UDN tinha o Gabriel Passos, o homem do petróleo, que foi um grande político. Podia ter sido com mais consistência, mas os militares cometeram o erro fatal de dissolver os partidos pelo Ato Institucional 2 e criaram duas siglas provisórias. Pegaram para ele, 70%, que era para manter o poder com a legitimidade de uma bancada do Congresso, apesar de quem mandava eram eles. Imaginaram que, com esse arranjo, permaneceriam no poder para o resto da vida, pois a eleição para presidente não estava em jogo; quem o elegia era um colégio eleitoral. Esse raciocínio era tão extraordinariamente errado... Nós brasileiros precisamos estudar mais, inclusive, nossos cientistas. Há muitas coisas cruciais na história que muita gente não sabe. No próprio regime militar, todos os processos sucessórios foram problemáticos. Castelo Branco levou um chega para lá de Costa e Silva. Com a morte do Costa Silva, houve um fato extraordinário: um golpe dentro do golpe, pois o vice-presidente era o deputado Pedro Aleixo, que não assumiu. E, então, chamaram o general Garrastazu Medici. Geisel se elegeu em 1973 sem problemas, mas tinha um padrinho, o irmão Orlando Geisel (então ministro do Exército), que não era brincadeira. mas em 1977, o general Silvio Frota quis depor o Geisel e ele, percebendo isso, o demitiu. Chegou-se muito perto de um conflito sério. Veio a sucessão do Geisel. Aí foi uma confusão considerável, porque tinha dentro do Exército um general muito respeitável, o Euler Bentes Ribeiro, quatro estrelas, que o (João) Figueiredo não tinha. Tinha o Magalhães Pinto, com o Severo Gomes, também querendo se candidatar a presidente da República. Aí, a sucessão foi complicada. O general Figueiredo era notoriamente despreparado para assumir o cargo. E teve ainda o azar de ser um homem doente, teve de ser operado em Cleveland (EUA) e passou metade do mandato doente. Foi um período colossalmente instável, em se tratando de um País governado pela corporação militar. Pior do que isso, só na Argentina.

Como o senhor vê hoje a influência dos militares no atual governo e o que se pode projetar independentemente do resultado da eleição no domingo?

Olha, eu entendo que os militares estão sendo cautelosos em parte por atitudes e prudência, em parte porque compreendem que o Brasil de hoje não é o de 1964. Quando o general Olympio Mourão Filho baixou de Minas com seus tanques, bastava prender 500 pessoas e estaria resolvido o problema. Hoje, com uma população 90% urbana, você não precisa de estudante universitário para sair por aí distribuindo panfletos, que hoje tem celular. Você convoca uma manifestação grande pelo telefone. Você viu isso no Egito. E tem certos setores da sociedade, que têm capacidade considerável de causar dano à ordem pública, como os caminhoneiros. Ou seja, o Brasil, hoje, é difícil de governar. E com um país dividido ao meio e polarizado na cúpula entre dois partidos ou duas tribos... O Brasil é um país tribal, antigamente, em São Paulo, tínhamos três: o PSDB, o Maluf e o PT. Hoje ficaram duas, os bolsonaristas e os petistas. Isso são tribos, não partidos políticos. O partido político deve ter a capacidade de se opor a qualquer corporação, sobrepor-se a esse grupo e conter seu apetite pecuniário. Se não tem essa capacidade, significa que não temos partidos. Mas você me perguntou sobre o Exército. Por prudência e por cautela o Exército está se mantendo à margem do quadro. Está cometendo um erro de botar gente demais no Executivo. Mas ele é envolvido pelo Bolsonaro em um jogo de ameaças e de blefes, que não tem a mínima possibilidade de fazer um golpe de estado. Bolsonaro blefava como se houvesse simpatia para essa tese entre os militares, o que não era verdade. A ameaça de golpe é, em si, um elemento de tumulto, mas podemos esquecê-la.

O senhor traça um cenário para o Brasil, mas há dois caminhos possíveis. Um seria a eleição de Lula e outro seria a de Bolsonaro. O senhor já disse que esses dois líderes não são iguais...

Eu vejo ceticismo...

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O sr. vê com ceticismo, mas reconhece diferenças neles. O que o sr. enxerga em um possível governo Lula e em um possível governo Bolsonaro? Que forças movem cada um dos candidatos?

Em um governo Lula, eu penso que ele faria um esforço sincero de ajudar grupos que constituíssem mais ou menos o que eu chamei de elite, pessoas que balizassem e fortalecessem as instituições. Vai ser difícil para burro, mas ele parece ter essa intenção e não gosta de briga, gosta de conversar. Bolsonaro acho que gostaria de fazer o que fez até aqui: entrega a economia para o Guedes, a economia não vai crescer, porque ele não vai conseguir, em um ambiente turbulento, achar recursos privados domésticos ou internacionais para os investimentos. O que Bolsonaro gosta mesmo não é da economia, mas andar de motocicleta. Ele deve ser o único caso no planeta de um líder que paralisou 200 km de rodovia na véspera de um feriado. Eu nunca ouvi falar em uma coisa dessas. Se reeleito, penso que nós tenhamos mais quatro anos perdidos. Vamos para uma década e meia, no mínimo. E, depois, após as turbulências todas da pandemia e da própria Lava Jato, que tinha a intenção boa de combater a corrupção, mas cometeu erros, o País ficou tumultuado. E isso ajudou a destruir os partidos políticos. Nós temos de ter um certo realismo de que, se os quatro anos forem o mesmo Bolsonaro motociclista, vamos ter problemas.

O senhor, como democrata e liberal, como vê, neste momento, essa série de questionamentos contra o Judiciário? Há quem considere que o TSE tem exacerbado a sua função ao tratar de fake news. Como o senhor vê isso?

O nosso Judiciário tem aspectos de puro surrealismo. A nomeação de um ministro é, praticamente, unilateral do presidente, pois o Senado raramente questiona uma nomeação. O magistrado é escolhido para representar o presidente. No Brasil, temos um Supremo que não é uma corte constitucional, como na Europa. Ele também se mete em questões criminais minúsculas. Aí você passa a ter conflitos todos os dias entre eles. Ninguém sabe o que pode ser feito individualmente ou em grupo. Então, a instituição Supremo é débil e vai continuar assim enquanto o processo for esse. Acrescente-se que temos uma Constituição quase irreformável, porque inventaram uma coisa chamada cláusula pétrea. Estou pensando no trânsito em julgado, que divide a Justiça do país em dois: você tem a Justiça dos pobres e a dos ricos. Basta você ter dinheiro para pagar um bom advogado, que ele vai empurrando com a barriga até a coisa prescrever. Isso não acontece com o presidiário da Pedrinha.

O senhor acha que o Supremo não está à margem, mas é parte do problema da desavença no Brasil?

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É parte sim. Uma parte grave, pois entre eles há antipatia, há alguns que se xingam. A escolha de um ministro de um tribunal constitucional não pode ser feita dessa maneira. Precisa ser gente com reputação, personalidade e conhecimento jurídico sério. Não pode ser gente que sai por aí dando entrevista a todo momento, ou que pede à secretária para carregar a sombrinha quando tem uma garoa ou quem encomenda toneladas de lagosta. O nosso Judiciário não tem a respeitabilidade que teria de ter na sociedade, no nível do comportamento pessoal.

O sr compartilha da visão de que há uma ativismo judicial?

Há e tem de haver porque dentro do Congresso, às vezes, ocorre uma balbúrdia. Como aquela comédia notável do senhor Lewandowski presidindo o impeachment de Dilma. A desorganização, a falta de seriedade e de vocação para a política no sentido sério da palavra, é o que, às vezes, vemos no Congresso. E isso força o Judiciário a se meter no meio deles. E eles (os políticos) retrucam, como o Roberto Jefferson fez agora, com dois revólveres na mão. Uma coisa surrealista.

O senhor me parece muito cético?

Cético não, eu estou desesperado.

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O senhor me parece discordar da ideia de (Max) Weber de que a modernidade faria o mundo caminhar em direção à racionalidade e à secularização?

Ele estava completamente errado. Weber estava completamente errado. O mundo caminhou para dificuldades cada vez maiores. Saímos da 1.ª Guerra, e o mundo se tornou cada vez mais perigoso. A política internacional se tornou cada vez mais perigosa, como vemos hoje na Ucrânia, onde já havia ocorrido o Holodomor (a grande fome provocada pela coletivização forçada das terras, nos anos 1930).

Há alguns anos, o senhor olhava a situação internacional em que o senhor classificava como um conflito entre o liberalismo e o antiliberalismo.

Exato.

Eram universos contrastantes. Era possível dividir as forças políticas no Brasil e no mundo dessa forma. O fenômeno do bolsonarismo, como o senhor o coloca nessa divisão de mundo?

O bolsonarismo é citado no mundo inteiro como o exemplo mais radical de direita radical, de antiliberalismo. Isso no mundo inteiro. Ele certamente é o mais despreparado e furibundo que nós temos e o mais desinteressado em governar. Ele gosta de mostrar poder.

Ele é parte dessa época de conflito?

Ele é continuidade, um resto dessa época, pois eu espero que a ordem volte. Mas estamos vivendo nessa época com outro parecidíssimo, que é o Donald Trump.

Qual o papel do liberalismo hoje no mundo?

O papel do liberalismo é que não há outro modelo. A Rússia e a China podem ter bombas atômicas a vontade, mas não terão capacidade, daqui a 30 anos, de governar em paz os seus respectivos países. Não sei se você sabe, mas, na China, as pessoas que vivem no interior e trabalham na agricultura não podem entrar nas cidades grandes sem autorização oficial, literalmente, sem um passaporte. Estamos falando entre 600 e 800 milhões de pessoas. A robustez do sistema chinês baseia-se no totalitarismo mais férreo que o mundo já teve notícia. Há horror ao estrangeiro. Há certas palavras na China que você não pode pronunciar em um restaurante, como Taiwan, Tibete e associar Praça da Paz Celestial à tanque. É um país governando no limite da força. Por isso, o liberalismo, apesar de abrigar populações menores, é um modelo que pode ter legitimidade mundial e pode ser aplicado em qualquer País. Antigamente, dizia-se que países pobres não tinham condição de ter democracia. Ora bolas. Isso é inverter os termos do problema, pois a democracia não é feita para usufruto do progresso, mas ela é feita para promover o progresso dentro de uma certa paz. Não é só a Suécia e a Dinamarca que têm essas condições.

Qual o papel dos intelectuais, nesse momento, da política brasileira?

No Brasil, a intelectualidade está derrotada, pois Bolsonaro é um fenômeno que ela não esperava. O Bolsonaro não ganhou, mas a esquerda marxista, a esquerda revolucionária, perdeu. Ela não tem condições de enfrentar a situação com um líder que não quer saber de revolução, que é o Lula, e outro que quer saber de revolução a favor dele. Em segundo lugar, intelectuais têm relação com as ciências humanas. Na Física e na Medicina, não tem isso não. Eles estão lá estudando. O que eu diria para os intelectuais é uma coisa: estude e se atualiza. Pois o que valia até a guerra da Ucrânia, em relações internacionais, já não vale mais. As pessoas precisam abrir os jornais com alguma frequência e livros mais recentes.

Quando o senhor diz que os intelectuais têm de voltar a estudar, o senhor diz isso porque essa seria a forma de eles buscarem legitimidade para o debate público?

Sim, se o intelectual quiser desempenhar o papel de intelectual, porque ter um diploma universitário não te faz um intelectual. O que te faz um intelectual é você ter autoridade para falar para o público. O intelectual, além de ter conhecimento, tem de se dedicar a um valor universalizável, que a sociedade esteja disposta a ouvir. Para ter esse papel, um intelectual tem de cumprir a sua parte: estudar muito, estar atualizado, meditar muito, tolerar muito, respeitar os outros, formular; tudo isso é que compõe um intelectual. No Brasil, todo mundo se vê como intelectual, mas, na verdade, nós temos muito poucos. Eu sou muito amigo do Roberto DaMatta, que tem um achado: ‘Você sabe com quem está falando?’. Mas como eu descrevo você no banco de trás do carro ouvindo uma música abominável e com vergonha de pedir ao chofer para desligar? A complexidade dos valores é infinitamente maior do que as pessoas imaginam. Com um valor só, não dá para classificar a sociedade. Você dizer que ela é estratificada, quer dizer, se eu falar para você calar a boca, você cala a boca. Algum tempo atrás, você não via entrando no elevador um office boy sem gravata e, mesmo nas universidades, metade das turmas ia de terno e gravata. Hoje, você entra no elevador e lá está o cara de camiseta, bermuda e uma espécie de chinelo. Mas o fato de ter essa liberdade de comportamento não te exime de ser um cidadão.

O senhor não concorda, então, com o Fidel Castro, que dizia que os bons modos não eram uma conquista burguesa, mas da civilização?

(Risos) Olhe eu nunca consegui concordar com o Fidel Castro em nada. Eu concordei com o Brizola em algumas coisas. Eu gostava não do que ele falava, mas da voz dele e da altivez que ele transmitia. Era um político; era um homem decente. Conversei longamente com Gorbachev também. Eram pessoas decentes e altivas. No Brasil, essa é uma palavra importante no momento. Nós temos de voltar a ser um povo altivo, porque nós não temos tempo a perder. Temos de ter respeito uns pelos outros e pela nossa educação, pelo estudo, porque o máximo que vamos atingir na vida é um País de nível médio de desenvolvimento, onde um certo bem-estar seja possível. Para fazer isso, o que precisamos fazer? Em primeiro lugar, investir mais. Sem investimento, não tem emprego. E, sem emprego, nem educação adianta. Esses testes internacionais – o Pisa, por exemplo –, mostram um desnível escandaloso e assustador, porque o Brasil não está no século 19; estamos no século 21. No ano de 1870, 70% da população italiana com mais de seis anos era analfabeta. Nos EUA, mais ou menos por essa época, a única universidade citável era Yale, que era uma versão muito piorada das universidades inglesas, que estudavam grego, latim e teologia. Você sabe que as três industrializações tardias – Alemanha, EUA e Japão – aconteceram nas mesmas três décadas do século 19 e se caracterizaram por um desenvolvimento acelerado do ensino técnico? Por isso eu digo: ou nós buscamos a concórdia, buscamos soluções, e levamos a sério a tecnologia e não só a tecnologia, paramos com essa besteira de PT contra Bolsonaro, ou não vamos chegar nem aos 28 anos para dobrar a nossa renda. O nosso destino, se não revolucionarmos o País no bom sentido da educação, vai ser uma tragédia. Isso aqui é um País onde a situação de saneamento, de saúde e ensino é tétrica. Não temos saída, a não ser crescer rapidamente, conservando o nosso ativo mais importante, que é uma política civilizada, com concórdia e formando uma elite com o sentido da vocação que o Max Weber falava, o sentido de ser exemplo para o País, do contrário, eu não estarei aqui, mas vocês vão e seus netos vão. Azar de vocês. Estarão lascados.

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