Desde o indiciamento de Jair Bolsonaro (PL) e outros 36 militares e aliados por tentativa de golpe de Estado, redes bolsonaristas têm tentado manobras narrativas para defender o ex-mandatário dos indícios reunidos pela Polícia Federal (PF) que o colocam no centro da conspiração.
Usando memes, charges e imagens produzidas com inteligência artificial, a tentativa é de atribuir falhas substanciais do plano como frutos de “invenções” da própria investigação. A corporação apontou detalhes da trama golpista em um relatório de 884 páginas.
Para o analista em monitoramento de redes sociais Pedro Barciela, a retirada do sigilo do documento nesta terça-feira, 26, pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), marca “um quarto nocaute do bolsonarismo nas redes em uma semana”. Os outros três golpes recentes, segundo ele, foram o atentado a bomba contra o STF, a revelação do plano para executar Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Geraldo Alckmin (PSB) e Moraes, e o novo indiciamento de Bolsonaro. A reação, segundo o analista, vem em forma de piada.
O levantamento produzido por Barciela reuniu 99 mil comentários feitos em 40 publicações da imprensa, no Facebook e no Instagram, que noticiaram a derrubada do sigilo do inquérito nesta terça-feira. A ideia dominante é a de que Bolsonaro teve participação ativa na trama golpista, com 70% afirmando o protagonismo do ex-presidente e pedindo sua prisão. Já 27% tentam defendê-lo, usando como estratégia retórica o tom de deboche ao se referirem, por exemplo, aos pontos em que o grupo golpista falhou, segundo a investigação.
“O tom jocoso permanece restrito ao bolsonarismo, mas busca de alguma maneira tornar viral o descrédito no inquérito por meio do humor. Piadas com Moraes, detalhes que parecem ser uma cena dos Trapalhões podem soar inofensivos, mas atendem a essa tentativa bolsonarista”, explicou o analista.
Um dos fatos representado com frequência nas redes remete ao episódio narrado no inquérito da PF em que um dos oficiais das Forças Especiais – os “kids pretos” –, tenta pegar um táxi em Brasília, após a operação que tinha como alvo Moraes ser cancelada. Nas imagens, militares aparecem cantando o clássico dos anos 1988 da cantora Angélica, “Vou de táxi”; em outras, um soldado fardado segura uma bazuca sobre o ombro enquanto tenta encontrar um carro vazio.
A defesa em tom de deboche tenta cumprir pelo menos três objetivos neste momento, avalia o doutor em semiótica pela Universidade de Bolonha e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Paolo Demuru. O primeiro é manter os indiciados no papel de “vítimas do sistema”, afirmando serem alvos de perseguição.
A piada também serve, segundo o pesquisador, para colocar os supostos golpistas em um lugar de superioridade. “‘Isso não nos diz respeito, é uma invenção, nós rimos do sistema’. Isso é coerente com toda a trajetória discursiva que eles sempre construíram e mobilizaram”, disse.
Autor de “Políticas do Encanto: extrema direita e fantasias de conspiração”, o semiologista elenca ainda que a construção do discurso de defesa também mira, compartilhado com outros temas que têm invadido as redes bolsonaristas, mudar o foco e o rumo da conversa.
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O “deboche” adotado pelas redes bolsonaristas segue o mesmo raciocínio do próprio Bolsonaro. Na última quinta-feira, 21, após ser indiciado pela PF, o ex-mandatário afirmou em suas redes sociais que não poderia “esperar nada de uma equipe que usa criatividade” para denunciá-lo, atacando nominalmente Moraes, o relator do inquérito.
Em outra ocasião, ao ser filmado cortando o cabelo, o ex-presidente também faz piada com o episódio narrado no inquérito como a desmobilização da tentativa de assassinato de Moraes. “Golpe agora não se dá mais com tanque, se dá com táxi”, afirmou. Filhos do ex-chefe do Executivo, o vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), também adotaram a mesma linha em seus perfis no X (antigo Twitter), afirmando que o pai está sendo alvo de “perseguição” para não concorrer em 2026.
Para Demuru, o inquérito da PF mostra os bastidores do que chamou de “armamento discursivo” usado previamente pelos golpistas para a construção de uma “crença coletiva”, que vem sendo construída há anos, e que embasaria mais tarde o golpe. “Quando você tem essas crenças sedimentadas no seio da opinião pública, é muito mais fácil justificar uma ação como aquela que estava sendo planejada. O discurso cria o real”, disse.
As piadas também foram utilizadas, mesmo que em menor escala, por grupos do campo progressista para narrar os indiciamentos, o que, para Demuru, não é a melhor estratégia para falar sobre o que estava em jogo com o eventual sucesso do suposto golpe de Estado.
“Os termos são importantes, mas ‘democracia’ é um conceito muito abstrato, inclusive cooptado pela extrema direita”, avaliou, dizendo que discursos que conseguissem sensibilizar as pessoas sobre o que da sua vida cotidiana estava em jogo caso um novo golpe militar fosse instaurado no País seria mais efetivo para a sociedade sentir a gravidade da trama revelada pela PF.
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