Bolsonaro não vetou o orçamento secreto; entenda o esquema

Presidente costuma afirmar que vetou o orçamento secreto e que ‘não tem nada a ver com isso’. Esquema, porém, foi criado por um projeto assinado por Bolsonaro, que permitiu o pagamento de R$ 65 bilhões

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Foto do author Daniel  Weterman
Atualização:

BRASÍLIA - Revelado por uma série de reportagens do Estadão, o orçamento secreto foi gestado dentro do Palácio do Planalto, no gabinete do então ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos. Na época, era ele o responsável por fazer a ponte entre o governo e o Congresso. Na prática, Bolsonaro abriu mão de decidir o que fazer com o dinheiro público em troca de apoio no Congresso e de preservar seu mandato de pedidos de impeachment.

Nesta sexta-feira, 14 de outubro, a Polícia Federal deflagrou uma operação contra um grupo que teria inserido dados falsos em sistemas do SUS para receber repasses de emendas parlamentares no Maranhão. É a quarta operação deflagrada neste ano que mira recursos do orçamento secreto. Duas pessoas foram presas.

O presidente da República e candidato a reeleição pelo PL, Jair Bolsonaro, durante a solenidade de posse do ministro Luis Filipe Salomão, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), ao cargo de Corregedor Nacional de Justiça realizada nesta terça-feira, 30, no Planalto Central em Brasília-DF. Foto: Wilton Junior/Estadão 

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Logo no primeiro ano de seu mandato, Bolsonaro sancionou R$ 30 bilhões em emendas do orçamento secreto. Ele poderia vetar os recursos, mas optou por autorizar o pagamento de 100% das verbas indicadas pelo Congresso. Em três anos, Bolsonaro entregou para o Centrão uma decisão que deveria ser dos seus ministros sobre o que fazer com R$ 65 bilhões.

Apesar de o presidente jogar a responsabilidade para o Congresso, todo o pagamento é controlado pelo governo, que escolhe quando pagar e qual parlamentar será beneficiado naquele momento. O congressista, nesse caso, indica para onde vai o dinheiro e, até mesmo, o que deve ser comprado com o montante. Como revelou o Estadão, deputados chegaram a definir até mesmo o valor que o governo deveria pagar por um bem público, como tratores, com esses recursos - todos superfaturados.

O presidente vetou o orçamento secreto?

Cobrado por seus opositores, Bolsonaro disse no debate da TV Bandeirantes, em 28 de agosto, e também em entrevistas posteriores que ele vetou o orçamento secreto e responsabilizou o Congresso pela criação do esquema. Seus aliados conseguiram viralizar esse trecho da entrevista nas suas redes sociais. Trata-se de uma inverdade.

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A primeira tentativa de viabilizar o orçamento secreto foi realmente do Congresso e Bolsonaro a vetou. O presidente, porém, recuou do próprio veto logo depois e encaminhou para o Congresso o texto que criou o orçamento secreto. O projeto é assinado por Bolsonaro e a exposição de motivos que o justifica leva a assinatura do general Ramos. Todo esse processo está documentado.

Assinatura do presidente Jair Bolsonaro no projeto que fixou as emendas do orçamento secreto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Foto:

A equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, tinha convencido o presidente de que o orçamento secreto engessaria o governo. Mas, quando o ministro Ramos ressuscitou a proposta, Bolsonaro trocou as justificativas técnicas que usou para barrar a medida pela criação de um orçamento que lhe permitiria escolher quais parlamentares seriam beneficiados com bilhões de reais.

Desde que o Estadão revelou o orçamento secreto, Bolsonaro tem negado a existência do esquema. O presidente chegou a chamar os jornalistas do Estadão de “idiotas” e “jumentos” por noticiar o caso.

Em ao menos duas reuniões no gabinete do general Ramos, no fim de 2019, técnicos previram que o esquema para aumentar a base de apoio de Bolsonaro poderia resultar no primeiro grande escândalo do seu mandato e transformar Bolsonaro numa “rainha da Inglaterra”. Na ocasião, tentaram dissuadir o Planalto, mas venceu a ala política.

O Congresso aprovou o orçamento secreto? Quem votou?

O orçamento secreto apareceu pela primeira vez em 2019, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que definiu as despesas do governo para 2020, segundo ano do governo Bolsonaro. A proposta foi aprovada pelo Congresso de forma simbólica, sem contagem de votos. O que significa que não é possível nominar como cada parlamentar se comportou.

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Bolsonaro vetou esse dispositivo que estabelecia o orçamento secreto. A maioria dos parlamentares votou para derrubar o veto do presidente (306 a 30 na Câmara e 37 a 30 no Senado), mas não houve votos suficientes para resgatar a proposta - eram necessários 41 votos no Senado. Nesse momento, a tentativa inicial do Congresso de criar o orçamento secreto havia morrido. E quem a resgatou foi o próprio Bolsonaro.

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Pressionado pelo Centrão e pela ala política do seu governo, Bolsonaro recuou do veto e encaminhou um novo projeto ao Congresso instituindo as verbas secretas, também aprovado de forma simbólica. Na prática, nunca houve oposição suficiente para derrubar o esquema no Congresso. Dessa forma, o esquema só se viabilizou porque Bolsonaro recuou do veto e elaborou novo texto criando o orçamento secreto.

Todos os deputados e senadores recebem orçamento secreto?

Todos os anos, deputados e senadores podem definir o que deve ser feito com uma parte do dinheiro dos impostos. O valor das emendas individuais é igual para todos os 513 deputados e 81 senadores e todo o dinheiro pode ser rastreado. Os órgãos de controle e os eleitores conseguem acompanhar o processo em sites como o Portal da Transparência, mantido pelo governo federal, e o Siga Brasil, mantido pelo Senado. É possível saber que um deputado x enviou sua emenda para a cidade y construir, por exemplo, uma creche. Também é possível saber que a prefeitura contratou a empresa x para fazer a obra e por qual valor.

Os políticos podem direcionar suas emendas orientados pelos ministérios. Os técnicos apresentam estudos que apontam as necessidades das prefeituras e estados e os projetos de maior interesse da União. Assim, o dinheiro vai para uma cidade que realmente precisa de uma determinada obra ou ação.

Com o orçamento secreto é diferente. Um pequeno grupo do Congresso passou a administrar no lugar do governo bilhões de reais. Cabe ao relator-geral do Orçamento da União (um deputado e um senador se revezam nessa função ano a ano) escolher quem terá direito a decidir onde serão aplicados os recursos públicos - a lista inclui até mesmo pessoas sem mandato parlamentar. Toda a articulação é encabeçada pelos presidentes da Câmara e do Senado.

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Caciques do Centrão puderam, pela primeira vez na história, definir sozinhos o destino de valores na casa dos R$ 300 milhões (enquanto que colegas não agraciados com orçamento secreto indicaram apenas R$ 18,4 milhões – valor das emendas individuais, aquela que todo mundo tem).

Na entrevista ao Jornal Nacional, o candidato do PT ao Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva, chamou o presidente de “bobo da corte” por entregar ao comando do Congresso essa atribuição que deveria ser do Executivo. O presidente também já foi chamado de “tchutchuca do Centrão” por essa mesma razão. Parlamentares da oposição, incluindo o PT, também foram beneficiados com o orçamento secreto nos últimos anos, por estarem alinhados com a cúpula do Congresso, mas em uma proporção menor à base do governo comandada pelo Centrão.

Em entrevista ao Estadão em julho deste ano, o senador Marcos do Val (Podemos-ES) contou, pela primeira vez, qual critério define que político poderá manejar o orçamento secreto. Ele disse à reportagem que pode indicar o que o governo deverá fazer com R$ 50 milhões por ter votado em Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para a presidência do Senado, como queria Bolsonaro. Na entrevista, o senador disse que nem sabia o que deveria ser feito com tanto dinheiro. É a prática do toma lá, dá cá. Ele foi recompensado com o recurso por ter votado em Pacheco.

Por que é orçamento secreto?

Ao contrário do que ocorre com as emendas parlamentares impositivas (aquela que todo mundo tem igual, não importa se o deputado é da base ou da oposição), no orçamento secreto o nome do parlamentar que indicou o valor não é público. Da mesma forma, não é possível saber o que o parlamentar mandou o governo fazer com o dinheiro, apenas se o congressista quiser informar. Após a série do Estadão, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a divulgação dos dados. Mesmo assim, grande parte dos deputados e senadores ignorou a ordem e o País ainda não sabe quem indicou mais de 70% dos recursos.

Assim, o eleitor ou os órgãos de controle do dinheiro público conseguem saber apenas que um determinado montante foi para uma prefeitura ou um governo estadual, mas não sabem dos acordos feitos por baixo dos panos para o destino daquele dinheiro.

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Por que o sigilo interessa aos políticos?

A falta de transparência já mostra seu lado nefasto. O Estadão revelou inúmeros casos de suspeitas de superfaturamento e sobrepreço em licitações feitas por prefeituras que receberam dinheiro do orçamento secreto. Tratores, caminhões de lixo, escolas, ônibus escolares, poços de águas foram comprados ou instalados por valores acima do mercado e em processos investigados por órgãos de controle. O esquema de corrupção no Ministério da Educação, também revelado pelo Estadão, usou orçamento secreto.

Há cidades com menos de dez mil habitantes, por exemplo, que receberam até três potentes caminhões de lixo sem sequer produzir resíduos para utilizá-los, enquanto que cidades vizinhas não têm nenhum. No caso dos poços cavados por indicação política e ignorando critérios técnicos, órgãos de controle já identificaram ao menos R$ 131 milhões de sobrepreço.

Isso ocorre porque com o orçamento secreto os parlamentares e o governo não seguem critérios técnicos para aplicação do dinheiro público, mas apenas políticos. Ou seja, os municípios atendidos são aqueles que deram mais votos para os congressistas, onde os prefeitos são aliados ou mesmo parentes dos parlamentares.

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