O chefe da seção brasileira da Transparência Internacional, Bruno Brandão, afirmou ao Estadão que a compra de imóveis com dinheiro em espécie por pessoas politicamente expostas (PEPs) “acende todos os alertas” para o crime de lavagem e ocultação de bens. Esta semana, reportagem do portal UOL revelou que metade dos imóveis do clã Bolsonaro foi paga total ou parcialmente com dinheiro vivo. Segundo o especialista, a atividade levanta suspeitas porque é altamente atípica e indica um aumento patrimonial incompatível com a renda da família do presidente.
Brandão defende o fortalecimento de órgãos como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e a aprovação de legislação complementar à Lei Antilavagem brasileira para fiscalizar esse tipo de transação. A Transparência Internacional formulou uma proposta que proíbe pagamentos superiores a R$ 10 mil usando dinheiro em espécie, em consonância com outros países. O texto está parado no Senado e aguarda indicação de um relator por parte do presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), senador Davi Alcolumbre (União Brasil).
Segundo Brandão, o Brasil anda na contramão do restante do mundo ao permitir transações de valores tão altos em espécie e deixar impunes casos de lavagem de dinheiro. Leia os principais trechos da entrevista:
É ilegal comprar imóveis com dinheiro em espécie?
Não, mas é o que se chama de transação atípica. Hoje, é muito incomum que você adquira coisas simples com dinheiro, usa-se cartão de crédito, transferência ou Pix. Para bens de alto valor, a transação em dinheiro é altamente atípica. E transações atípicas são reguladas na lei antilavagem brasileira, assim como outras leis semelhantes que a maioria dos países adota para regular especificamente o setor de imóveis. Comprar imóvel em dinheiro vivo é suspeito de lavagem de dinheiro em qualquer parte do mundo.
Por que levanta essa suspeita?
Porque ninguém mantém grandes valores estocados. Um cidadão comum jamais guarda essa quantia de dinheiro, seja pelos riscos ou pela inconveniência. No entanto, isso é extremamente comum quando se trata de políticos. O caso da família Bolsonaro é um exemplo, mas também já houve casos envolvendo Michel Temer, Lula e Fernando Collor.
Bolsonaro perguntou ‘qual o problema’ de comprar um imóvel em dinheiro vivo.
Ao se tratar de pessoa politicamente exposta (PEP), e nesse caso é uma família de políticos, o risco dessa transação aumenta significativamente. Também está associado a isso um aumento patrimonial incompatível com a renda dessa família. Outro ponto são os antecedentes de investigações das quais eles são objetos. No caso da família Bolsonaro, tudo aponta para um esquema criminoso de baixíssima sofisticação, tosco, que seria facilmente identificado se houvesse um sistema realmente efetivo de controle de lavagem de dinheiro e de responsabilização legal.
O que a Lei Antilavagem regula no Brasil?
Ela instituiu o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que é o coração do sistema antilavagem brasileiro. Ele é responsável por receber informações dessas transações atípicas de um rol extenso de setores obrigados, que inclui o sistema bancário, contadores, cartórios e inclusive corretores de imóveis. Um corretor, quando vai fazer negócio com uma pessoa exposta politicamente (PEP), tem obrigações adicionais e deve tomar cuidados para garantir a origem lícita desse dinheiro. E quando é um político transacionando em dinheiro vivo, isso acende todos os alertas. Então, os profissionais envolvidos nesses negócios muito provavelmente deixaram de cumprir com as suas obrigações como sujeitos regulados pela lei de lavagem de dinheiro.
Essa lei teria competência para alcançar a família do presidente da República?
O presidente e sua família também estão sujeitos, como qualquer cidadão, à lei de lavagem de dinheiro, e as transações atípicas de qualquer um deles devem ser encaminhadas ao Coaf. No caso do presidente, essa informação deve ser transmitida ao foro adequado, de acordo com a lei do foro privilegiado, ou seja, à Procuradoria-Geral da República.
Na sua avaliação, proibir a compra de imóvel em dinheiro vivo seria eficiente para estancar a lavagem de dinheiro?
A Transparência Internacional tem uma proposta de lei que busca estabelecer regras para o uso do dinheiro em espécie em transações de qualquer natureza. O texto prevê um limite de R$ 10 mil para atividades de transações comerciais ou profissionais, então não seria mais permitido adquirir qualquer bem com mais de R$ 10 mil em dinheiro vivo. O transporte de recursos ficaria limitado ao valor de R$ 100 mil ou o equivalente em moeda estrangeira. A posse teria um limite de R$ 300 mil. É uma lei absolutamente necessária, porque não há justificativa plausível para essas movimentações em dinheiro em espécie.
Está parada no Congresso?
Ela está parada na Comissão de Constituição e Justiça no Senado. Já foi aprovada na Comissão de Assuntos Econômicos, e veja só, quem tentou barrar, tentou impedir com pedido de vista por duas vezes foi o senador Flávio Bolsonaro. Apesar dessas tentativas de obstrução, ela foi aprovada. Agora, está na CCJ, mas já esperando há muito tempo a distribuição para um relator. Então, está nas mãos do senador Davi Alcolumbre (presidente da CCJ).
Em outros países esse tipo de lei é comum?
É muito comum. A União Europeia já regulamentou essas transações em dinheiro vivo, e as leis de lavagem de dinheiro estão se tornando cada vez mais estritas mundo afora. Elas se tornaram muito mais rígidas após o 11 de setembro, porque a lavagem de dinheiro é central para o financiamento do crime organizado internacional. O Brasil dá sinais para o mundo de que está andando na contramão, com a impunidade de casos tão evidentes, escancarados e até toscos. É uma péssima mensagem para o mundo.
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