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Bônus a juízes contraria Constituição e compromete serviços essenciais, diz consultoria do Senado

Nota técnica afirma que proposta provoca aumento de R$ 82 bilhões em despesas e R$ 22 bilhões em perdas de arrecadação em três anos; procurado, presidente do Senado não quis se manifestar

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Foto do author Daniel  Weterman
Atualização:

BRASÍLIA - A proposta que cria um bônus salarial para juízes e integrantes do Ministério Público, a chamada PEC do Quinquênio, contraria princípios da Constituição, representa um risco para a entrega de serviços essenciais à população e pode fazer com que Estados descumpram a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) ao estourar o limite de gastos com pessoal, de acordo com nota da Consultoria do Senado a que o Estadão teve acesso.

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De autoria do próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a Proposta de Emenda Constitucional cria mais um adicional ao salário de juízes e procuradores fora do limite estabelecido pela Constituição para a remuneração desses profissionais. O aumento será de 5% a cada cinco anos, até chegar a 35%, fazendo com que o salário final extrapole o teto do funcionalismo (hoje de R$ 44.008,52 mensais).

O aumento será dado para magistrados que já recebem auxílio moradia, férias de 60 dias e bônus por trabalharem em mais de uma comarca. O “penduricalho” foi estendido para outras categorias quando o texto passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, em abril, incluindo ministros e conselheiros dos tribunais de contas, advogados públicos, defensores públicos e delegados da Polícia Federal.

Na foto, o líder do governo no senado, senador Jaques Wagner (PT-BA), e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Foto: Wilton Junior/Estadão

Os defensores da PEC dizem que a proposta serve para valorizar quem está há mais tempo na carreira e estimular a permanência dos bons profissionais no serviço público. Críticos, porém, apontam um aumento de privilégios para grupos que já são considerados a elite do funcionalismo e um impacto negativo para as contas públicas. Como revelado pelo Estadão, um estudo do Instituto Liberal mostra que magistrados já ganham quase o dobro do salário de advogados com doutorado, enquanto procuradores recebem recebem três vezes mais do que advogados com mestrado.

De acordo com a consultoria do Senado, a aprovação da proposta representará um aumento de R$ 82 bilhões nas despesas do setor público em três anos: R$ 25,8 bilhões em 2024, R$ 27,2 bilhões em 2025 e R$ 28,6 bilhões em 2026, somando União, Estados e municípios. O cálculo considera todas as categorias aprovadas no texto da CCJ. O valor de 2024 simula a vigência do benefício para o ano todo.

Além do aumento de despesas, a PEC também provoca queda de arrecadação para os cofres públicos. Ao deixar o “penduricalho” fora da cobrança de Imposto de Renda, União, Estados e municípios deixarão de arrecadar R$ 22 bilhões em três anos. O efeito acontece porque o benefício pode ganhar uma natureza especial na folha salarial dos juízes e demais profissionais, escapando do pagamento do tributo.

A nota foi elaborada a pedido da liderança do governo no Senado, que é contra a proposta. “Como ex-governador, eu quero dizer que a pior política de gestão de pessoal que se tem é a do anuênio e a do quinquênio, porque ela não fala em meritocracia, ela é aumento vegetativo da folha, independentemente do gestor, e, portanto, na minha opinião, ela não estimula a melhoria do serviço público prestado”, afirmou o líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA), durante a votação da proposta na comissão, no dia 17 de abril.

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O relator da PEC, Eduardo Gomes (PL-TO), defendeu o texto como valorização do funcionalismo público, em especial dos servidores concursados. “Não é possível dizer que a PEC vai quebrar o País. A gente precisa gastar melhor o dinheiro público, e talvez gastar melhor seja gastar com bons funcionários públicos, em qualquer carreira, na carreira jurídica e em qualquer outra carreira”, disse.

‘Penduricalho’ pressiona investimentos e despesas dos Estados com pessoal

Com o aumento de despesas, a União vai aumentar o comprometimento com gastos obrigatórios, que incluem salários e aposentadorias. É uma parte do Orçamento que o governo não pode cortar. “Ressalte-se que essa pressão sobre as despesas discricionárias vem agravar uma situação de risco concreto à prestação dos serviços públicos federais por redução do espaço fiscal para essas despesas, risco esse objeto de sucessivos alertas do Tribunal de Contas da União”, diz a nota.

Em um ano, pontua a consultoria, o governo federal gastaria R$ 5 bilhões a mais com o quinquênio. O valor representa 2,32% de toda a despesa com manutenção da máquina e investimentos. “Ou seja, mais de dois por cento do total de recursos disponíveis para a execução de políticas públicas na esfera federal (exceto transferências de renda), concentrados em algumas dezenas de milhares de agentes públicos beneficiários que já dispõem de salários entre os mais elevados no universo de assalariados públicos e privados.”

Dos R$ 82 bilhões, a maior parte do custo (R$ 65,6 bilhões) recai sobre Estados e municípios, que têm mais empregados nessas categorias. O risco é que, ao aumentar as despesas com os servidores privilegiados, os Estados extrapolem o limite de gastos com funcionários estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

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O valor total da folha dos Executivos estaduais seria ampliado em 1,75%, e os Legislativos em 1,08%. Os Judiciários subnacionais arcariam com um aumento de 12,10% da conta de pessoal, enquanto os Ministérios Públicos elevariam sua folha em 12,94%. Em um cenário em que a maioria dos entes está perto de alcançar o limite legal de pagamento de pessoal, “trata-se de uma substancial elevação do comprometimento dos Estados com suas folhas de pagamento, especialmente no âmbito da justiça”, diz a nota técnica.

PEC do Quinquênio contraria a Constituição, diz consultoria do Senado

Na avaliação da consultoria, a PEC pretende mudar a Constituição, mas contraria princípios da própria Carta Magna. Entre as regras desrespeitadas estão a restrição expressa de novos encargos pela União aos demais entes federados sem a previsão de onde sairá o dinheiro, a aplicação do teto remuneratório à aposentadoria e a proibição de benefício da seguridade social sem a fonte de custeio total.

A proposta é de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que atendeu a um pedido do então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, para pautar a medida, ainda na legislatura passada. O atual presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, também é favorável. O presidente do Senado prometeu pautar o quinquênio e, em troca, aprovar um projeto que acabaria com os supersalários no funcionários. A PEC avançou, mas o fim dos supersalários está parado.

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No dia 30 de abril, o presidente do Senado concedeu uma entrevista coletiva e afirmou que o impacto da proposta é inferior a R$ 3 bilhões por anos para a União, considerando o texto original, e não o aprovado na CCJ do Senado. De acordo com Pacheco, o aumento de gastos seria compensado pela aprovação do projeto de lei que limita os supersalários. “Os números são variáveis a partir da premissa que se estabelece”, disse o senador.

De fato, conforme os cálculos da consultoria, o impacto do texto original para a União é de R$ 2,7 bilhões em 2024, mas o parecer aprovado na comissão aumentou o custo para R$ 5 bilhões. Além disso a inclusão de outras categorias e o alcance para Estados e municípios aumentaram o valor para mais de R$ 20 bilhões por ano. Procurado para comentar o teor da nota da consultoria, Pacheco não se manifestou.

PEC do Quinquênio tem efeito cascata para categorias não mencionadas no texto

Além das categorias atendidas pela proposta do Senado, outros funcionários públicos poderão embarcar no penduricalho, de acordo com a consultoria técnica da Casa. O impacto, nesse caso, é incalculável. Outros grupos podem pedir equiparação aos direitos e receber o mesmo bônus por decisão de um governador, prefeito ou mesmo por interpretação da Justiça.

A nota da consultoria apresenta um relato sobre efeito cascata e sobre o risco de uma categoria ser privilegiada em relação a outra: “de fato, as possibilidades são intermináveis: no entorno mesmo de um processo criminal: se um juiz, um promotor, um defensor público e um delegado de polícia têm o benefício, por que não também os integrantes das demais carreiras policiais, como peritos, agentes ou investigadores (neste caso, sequer sob exigência de curso superior em algumas carreiras) ou os que atuam em outros órgãos policiais (como as polícias penais ou a polícia rodoviária federal)? [...] Se, por outro lado, a razão de perceberem o benefício for o de serem formados em Direito, também o professor universitário dessa especialidade não o teria? Mas se esse professor o tivesse, por que não todos os demais professores que exercem o mesmo papel formador?”

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