Brazão comprou imóvel suspeito de grilagem no mesmo condomínio em que ‘Capitão Adriano’ tem terreno

Conselheiro do TCE do Rio, Domingos Brazão é apontado como mandante da morte de Marielle Franco; defesa diz que conteúdo de novo relatório da PF “afasta-se do objeto da investigação”

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Foto do author Rayanderson Guerra
Atualização:

RIO – O conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) Domingos Brazão, preso e denunciado como mandante da morte da vereadora Marielle Franco (PSOL), comprou um imóvel no mesmo condomínio em que o miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega é apontado como dono de um lote de alto padrão na zona oeste da capital carioca. O terreno, que segundo a Polícia Federal (PF) tem “robustos indícios” de grilagem, foi adquirido por Brazão por um valor cerca de 65 vezes menor do que o estimado como base pela prefeitura do Rio e está na mira da PF em uma nova investigação que deve ser aberta para apurar o conglomerado de imóveis do conselheiro.

A intrínseca relação de Domingos Brazão com grupos milicianos e de grileiros da zona oeste do Rio é apontada pela PF como um dos fios condutores para entender a motivação do assassinato de Marielle. O próximo passo dos investigadores é destrinchar a origem do emaranhado de imóveis do conselheiro do TCE e as negociações escusas com grupos paramilitares. Para a polícia, não resta dúvida: Brazão beneficiou e foi beneficiado pelos criminosos.

Conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, Domingos Brazão.  Foto: Marcos Arcoverde/Estadão

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O relatório da Polícia Federal, anexado na denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Brazão, aponta que o conselheiro do TCE é dono de 87 imóveis na capital fluminense, avaliados em R$ 25 milhões. O terreno citado pela PF com “robustos indícios de grilagem” é alvo de uma disputa judicial que se arrasta há pelo menos duas décadas na Justiça do Rio. O condomínio Planície do Recreio, em Vargem Grande, é apontado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) como resultado da ação criminosa de grilagem com a participação de um ex-delegado, um advogado, um tabelião, um escrevente e um policial civil. Uma espécie de reduto de criminosos e vítimas de milicianos e grileiros.

A defesa de Domingos Brazão, representada pelos advogados Marcio Palma e Roberto Brzezinski, diz que o novo relatório apresentado pela PF “no âmbito do procedimento que apura o homicídio da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, afasta-se do objeto das investigações e reforça, mais uma vez, a ausência de elementos que sustentem a hipótese acusatória”.

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Uma família reivindica na Justiça a posse de todo o terreno. O caso, ajuizado na 5ª Vara Cível do Rio, em 2013, tem 180 pessoas como rés. De acordo com o MPRJ e com a polícia, o terreno foi legalizado com base em documentações falsas, em um conluio de grileiros, autoridades e funcionários de cartórios da cidade. O caso se arrasta sem uma definição sobre a posse da propriedade.

Brazão adquiriu metade de um dos imóveis do condomínio, correspondente à área de 10 mil metros quadrados, em agosto de 2023, por meio da empresa Superplan Administração de Bens Imóveis e Participações – criada pelo conselheiro e sua mulher, Alice Brazão. O primeiro alerta da PF foi o valor pago pelo imóvel: R$ 110 mil. De acordo com os investigadores, o terreno é avaliado pela prefeitura do Rio, para fins de cálculo dos emolumentos, em R$ 7.096.000,00, cerca de 65 vezes o valor pago por Brazão.

Área do condomínio Planície do Recreio, em Vargem Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro Foto: Reprodução/Google Maps

Não fossem os indícios de grilagem, seria Brazão um exímio negociador. No entanto, segundo a PF, a “grilagem se dava, usualmente, com a utilização de pessoas de baixa renda. Os imóveis eram ocupados e a posse ou propriedade, em seguida, reivindicada. Após a regularização é que o grupo criminoso adquiria os direitos de posse e de propriedade dos bens, diretamente ou por meio de laranjas e pessoas jurídicas interpostas, comercializando-os com lucros exorbitantes”.

Adriano da Nóbrega, ou “Capitão Adriano”, como era conhecido, é “dono” de um dos terrenos no condomínio de residências de luxo na zona oeste. Ex-capitão do Bope, ele esteve na mira dos investigadores no processo de apuração dos mandantes e executores de Marielle. O miliciano foi apontado como um dos líderes do grupo de matadores de aluguel conhecido como Escritório do Crime. O ex-PM Ronnie Lessa, denunciado por matar a vereadora carioca e o motorista dela, em março de 2018, seria um dos integrantes do grupo criminoso.

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Adriano foi morto em uma operação conjunta das polícias da Bahia e do Rio de Janeiro na cidade baiana de Esplanada, em fevereiro de 2020. Ele estava foragido da Justiça, procurado por crimes que envolviam grilagem de terras, cobrança irregular de taxas à população e receptação de mercadoria roubada.

Adriano Nóbrega, miliciano morto em 2020 Foto: Reprodução/Polícia Civil

O ex-capitão do Bope foi um dos réus no processo que o espólio de Rosário Giovanni Umberto Stramandinoli e de Cecília Torreão Stramandinoli move para tentar reaver toda a área do Condomínio Planície do Recreio. Ele recebeu a posse de um lote no terreno ocupado pelo grileiro identificado no processo como Sebastião Ferreira Campos, em outubro de 2001. De acordo com os registros do imóvel, Adriano pagou R$ 20 mil pela posse por 36 anos do local. É o que diz o MPRJ, que denunciou o grupo à Justiça.

Em março de 2013, a família Stramandinoli entrou com um pedido de reintegração de posse do local contra o miliciano. Desde então, a Justiça tentou intimá-lo a depor, ano a ano, sem sucesso. Anos antes, em 2006, Sebastião Ferreira Campos, que cedeu a posse para Adriano, foi denunciado pelo MP e condenado, em 2008, por estelionato. O Estadão tentou contato com a viúva de Adriano da Nóbrega, Julia Emilia Mello Lotufo, mas não obteve retorno.

Assinatura de Adriano da Nóbrega em registro de imóvel suspeito de grilagem. Domingos Brazão comprou terreno no mesmo condomínio. Foto: Reprodução/Processo judicial

Os advogados da família Stramandinoli argumentam que os autores da ação exerceram legitimamente a posse sobre os dois imóveis supracitados, desde julho de 1957. “Como já acima exposto, a grilagem praticada sobre os imóveis dos autores envolveu a comercialização ilegal de áreas para mais de uma centena de pessoas (...) dada à ilicitude de seu objeto, a escritura de promessa de cessão acima referida se mostra nula de pleno direito”, dizem.

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Brazão comprou um terreno no mesmo local. Na primeira matrícula do imóvel, de maio de 2021, aparecem como proprietários um eletricista e uma doméstica. Eles adquiriram a posse do imóvel por usucapião – quando uma pessoa consegue a regularização de um local após viver anos como suposto proprietário do terreno. É uma ferramenta jurídica típica usada por grileiros, que invadem determinada área e depois a reivindicam como se fosse sua por direito.

Mas não é esse o único fato que chamou a atenção da PF. O imóvel, antes do primeiro registro, encontrava-se sob a posse de Pasquale Mauro, considerado pela polícia como um dos maiores “grileiros” da região. Em 2003, Pasquale, “não por coincidência” – de acordo com a Polícia Federal –, foi condecorado com a Medalha Tiradentes, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), por iniciativa justamente de Domingos Brazão.

A defesa do espólio de Pasquale Mauro diz que “não há qualquer decisão judicial que o tenha condenado pela prática de grilagem ou de conduta correlata”. Segundo os advogados, “a associação de Mauro com o caso foi feita, de maneira inconsistente e imprecisa, a partir de uma ação de usucapião impetrada pelos detentores da posse do referido terreno, dois anos depois de sua morte, em 2018, em face do extinto Banco de Crédito Móvel, proprietário original do imóvel”. A defesa diz que vai pedir esclarecimentos cabíveis à Polícia Federal e ao Ministério Público”.

“Não guarda relevância para esta investigação o fato de um político hoje investigado pela morte de Marielle Franco ter, há mais de vinte anos, agraciado Pasquale Mauro com a Medalha Tiradentes, honraria recebida de políticos variados por inúmeros empresários cariocas”, diz.

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Para a Polícia Federal, não resta dúvida de que Brazão se aliou a milicianos para “promover a prática continuada de crimes”.

“E assim se conclui a história: o terreno permaneceu, por décadas, sob a posse do ‘grileiro’, foi usucapido por pessoa de reduzida capacidade econômica e posteriormente transferido a Domingos Inácio Brazão, aliado politico do possuidor original, a preço módico, em claro ajuste entre os participantes. Todo esse relato não deixa dúvida, portanto, de que Domingos Inácio Brazão e João Francisco Inácio Brazão tornaram-se integrantes de organizações criminosas constituídas por milicianos, com quem se aliaram. E que agiam, defendendo os interesses do grupo, junto às instituições de Estado, para promover a prática continuada de crimes de parcelamento irregular do solo com finalidade de lucro, extorsão e outros delitos violentos que lhes garantiam a perpetuação do domínio territorial”, conclui a Polícia Federal.

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