Um desentendimento entre os governos de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a disputa pela paternidade das obras do prometido túnel que ligará as cidades de Santos e Guarujá ameaçam atrasar o empreendimento que poderia beneficiar 40 mil motoristas diariamente na Baixada Santista. De um lado, o governo federal tem a intenção de construir a obra com menor participação da iniciativa privada e sem a gestão estadual, que queria financiar também com recursos federais a sua fatia no plano de dividir a construção. De outro, o governo do Estado, defensor de uma PPP com uma participação mais ampla da iniciativa privada, diz que a proposta federal demandaria um novo projeto executivo e um novo pedido de licença ambiental, o que atrasaria o processo.
Em meio aos debates técnicos, emergem fatores políticos que movem os dois lados. Para aliados de Tarcísio, a União quer controlar a obra sozinha para viabilizar um possível retorno de Geraldo Alckmin (PSB) ao Estado na campanha de 2026. De outro, representantes do governo federal reclamam que a gestão Tarcísio atrasa a resposta ao pedido de atualização da licença ambiental justamente para impedir que a União faça a obra sozinha. Além disso, as desavenças que envolvem o Ministério de Portos e Aeroportos também acirram as tensões entre o Republicanos, que comanda a Pasta, e o governador, principal estrela do partido.
De sua parte, governo estadual afirma ter condições de levar adiante um projeto próprio para a obra e, nos bastidores, promete jogar duro na liberação de licenças essenciais para o empreendimento sair do papel por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), como quer o governo federal. Procurada, a gestão paulista afirma ter disponibilidade financeira e de captação para realizar a obra, e alega que a gestão federal não pediu uma nova licença prévia para realizar o empreendimento, já que o projeto foi modificado desde que uma autorização foi concedida para outra versão do túnel, feita pelo Estado em 2014. Já o Ministério dos Portos e Aeroportos não se manifestou.
A construção de uma ligação seca entre Santos e Guarujá é uma demanda antiga da região. Hoje, o caminho entre as duas cidades é feito por estrada, em um trecho de 43 quilômetros de extensão. Outra opção dos motoristas é cruzar os municípios por meio de uma balsa, que demanda um tempo de espera variável a depender das condições climáticas e do fluxo de veículos. Já o túnel submerso terá apenas 1,7 quilômetro de extensão, resolvendo o gargalo de mobilidade entre as duas cidades. Para isso, teria que ser construído em uma profundidade de 20 metros no canal de Santos. Seria o suficiente para não comprometer o tráfego de navios no local, onde o calado chegará a no máximo 17 metros. Atualmente, a profundidade é de 15 metros. O túnel teria três faixas por sentido, além de uma integração com veículo sob trilhos (VLT), ciclovia e passagem urbana. Estima-se que a travessia submersa seria utilizada por aproximadamente 40 mil pessoas por dia e poderia reduzir em 25 minutos o tempo de viagem em relação à opção por balsa.
O imbróglio ganhou mais corpo há cerca de duas semanas, quando o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa (PT), informou ao governo paulista, por telefone, que o acordo então existente para realizar a obra em parceria com o Estado havia sido desfeito, e que a União faria a obra por sua conta. A Secretaria de Parcerias e Investimentos (SPI), do governo de São Paulo, disse possuir disponibilidade financeira e de captação de recursos para o projeto, mas pretendia custear os R$ 2,7 bilhões que lhe cabiam na divisão das despesas por meio de um financiamento no BNDES, o que o governo federal não aceitou. Desde então, auxiliares de Tarcísio passaram a lembrar que, embora o Porto de Santos, local onde a obra será iniciada, seja de jurisdição federal, o projeto depende de licença da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb).
Para tirar a obra do papel, é preciso fazer uma dragagem no canal do porto. Por causa disso, em junho do ano passado, o presidente da Autoridade Portuária, Anderson Pomini, enviou um ofício à empresa estadual em que pede acesso a material técnico, planilhas orçamentárias, projeto executivo e “licenças ambientais devidamente renovadas” para dar andamento ao empreendimento. Até hoje, porém, não obteve resposta.
No governo federal, também há um debate interno de que, para obras compreendidas na poligonal do porto (entre a perimetral de Santos e a do Guarujá com o canal no interior), a competência para as licenças ambientais seria do Ibama, em especial quando envolve elevado volume de dragagem como a proposta para construção do túnel. No ofício enviado à Cetesb, embora peça a disponibilização das licenças ambientais prévias, a autoridade portuária complementa: “em que pese requerimento que já fora protocolado junto ao Ibama para que seja avocada a competência para a renovação/atualização das mesmas licenças, tendo em vista a natureza jurídica de empresa pública federal, da ora requerente”.
O governo estadual, por sua vez, contesta essa interpretação. Em nota ao Estadão, a gestão Tarcísio reafirmou que “a competência é da Cetesb, e não do Ibama, em consonância com a Lei Federal Complementar nº 140/2011″. Segundo o governo do Estado, “a autarquia emitiu, em abril de 2014, a Licença Ambiental Prévia (LP) para o empreendimento, sob responsabilidade da Dersa” e que “até o momento, não foi protocolizado na Cetesb um novo pedido de LP para o empreendimento”.
Disputa política em meio aos debates técnicos envolve as eleições de 2026
Na visão de aliados de Lula, o governo de São Paulo quer tumultuar o processo, devido à frustração por não poder reivindicar a paternidade do túnel. Integrantes do Palácio dos Bandeirantes, por outro lado, veem o rompimento do acordo como um movimento para reabilitar o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) na política de São Paulo. Eles apontam para a relação do vice com Pomini, ligado ao partido de Alckmin, e que se manteve no cargo mesmo após a troca de comando no Ministério dos Portos e Aeroportos, em setembro do ano passado, quando Márcio França (PSB) deu lugar ao deputado federal Sílvio Costa Filho (Republicanos-PE). A Vice-Presidência foi procurada para comentar o caso, mas não quis se manifestar.
Em 2014, quando era governador de São Paulo, Alckmin chegou a fazer um projeto da obra por meio da Dersa, empresa paulista que foi liquidada na gestão João Doria. No entanto, a ideia foi deixada de lado devido a restrições orçamentárias durante a crise econômica dos anos seguintes.
Aliados de Tarcísio veem agora a obra como uma marca que Alckmin poderia apresentar em 2026, em uma eventual candidatura de oposição ao governo do Estado. Também disparam contra Costa Filho, de quem esperavam mais proatividade para encontrar solução que viabilize a participação do Estado no projeto, já que ele pertence ao Republicanos, mesmo partido do governador. O imbróglio, segundo eles, voltou a gerar tensão entre Tarcísio e a cúpula da legenda da qual é a principal estrela.
O governador também já fez planos para a obra no passado. Como ministro da Infraestrutura do governo de Jair Bolsonaro, incluiu o empreendimento em um projeto de privatização do porto. A construção da chamada “ligação seca” entre as cidades era uma das contrapartidas que a empresa compradora do porto seria obrigada a realizar. Com a eleição de Lula, esta alternativa de privatização do porto foi descartada, inviabilizando a ideia original de Tarcísio.
Ao assumir o governo de São Paulo, Tarcísio passou a vislumbrar a construção do túnel apenas com recursos privados, mediante concessão. A empresa que fizesse a obra teria o direito de explorar o trecho economicamente em pedágios. Lula, no entanto, optou por incluí-la no PAC.
Governo paulista quer atualizar projeto antigo para licitar a obra no segundo semestre
O governo de São Paulo afirma, que, em dezembro do ano passado, contratou a Fipe para atualizar o projeto realizado pela Dersa, com o objetivo de realizar o leilão no segundo semestre deste ano. Já havia também assinado o acordo de cooperação técnica que permitiria a criação de um grupo de trabalho com o Ministério dos Portos e Aeroportos, a Autoridade Portuária de Santos, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e a Secretaria de Parcerias em Investimentos do Estado de SP para viabilizar o cronograma.
O Estado diz ainda que “possui disponibilidade financeira e de captação de recursos para a construção do túnel imerso Santos-Guarujá”. “Não há necessidade de disponibilidade financeira na Lei Orçamentária Anual (LOA) estadual de 2024 para o projeto, uma vez que as obras não serão iniciadas no exercício vigente”, completou a gestão estadual.
O governo Tarcísio também argumentou que vinha atuando em conjunto com a gestão federal para viabilização do empreendimento, desde a qualificação do projeto no PAC, “enviando todos os documentos produzidos internamente para lançar a PPP, como Modelo Econômico-Financeiro, Edital, Contrato e Anexos Técnicos”.
Segundo o Estado, como o único projeto executivo existente para o túnel foi desenvolvido pela Dersa, para o governo federal iniciar as obras em 2025 precisaria elaborar um novo projeto, ampliando o prazo e entrega das obras. “Além disso, o projeto do governo estadual comporta o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos)”, explicou.
Ainda segundo a gestão estadual, a modelagem que já havia sido proposta pelo governo paulista para túnel previa investimentos de R$ 5,96 bilhões, sendo R$ 2,7 bilhões em aportes públicos das duas gestões, e a participação da iniciativa privada por meio de uma PPP. “Nestes moldes, uma consulta pública poderia ter sido aberta ainda em 2023″, diz o governo.
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