Alcunhada de “justiça eterna” pelo escritor e diplomata português Eça de Queiroz, a democracia é um daqueles verbetes que pouco admitem objeção. Defendê-la, de fato, parece tarefa difícil e acaba se resumindo para poucos, mas dizer que a defende é uma cartilha que parece ser peremptória para quem quer ser aceito. Essa situação tragicômica faz com que o ditador venezuelano Nicolás Maduro seja um grande “garantidor” da democracia em seu país. Para além da semântica, a prática da democracia, todavia, é custosa e depende de muita vigilância e cuidado para que seja real e efetiva.
No Brasil, 81% dos habitantes concordam que a democracia é o melhor regime político para o País. Um levantamento contratado pelo Observatório da Democracia, da Advocacia Geral da União, aplicado pelo Ipespe, no final de 2024, mostra ainda que há uma preocupação latente com a preservação desse sistema, já que sete em cada dez entrevistados se mostram inseguros em relação à sua preservação nos tempos atuais. Nesse contexto e levando em conta a realidade política nacional com a polarização lulobolsonarista, cada lado faz um esforço tremendo para acusar o outro de ser um detrator do regime democrático.

Na campanha de 2022, em que Lula venceu Bolsonaro por ínfima diferença, abaixo dos 2%, o atual presidente fez uma grande artilharia pela defesa democrática, acusando o mandatário da época de ser um adepto do regime ditatorial militar, que governou o Brasil por longos 21 anos. Esse movimento e a baixa capacidade de resposta do bolsonarismo a essas acusações, fez com que parte da classe mais alta brasileira, que tinha verdadeira objeção a Lula, tapasse o nariz e os olhos e fosse para as urnas votar no candidato petista. O medo de uma possível legitimação de Bolsonaro nas urnas era visto como capaz de o empoderar para uma aventura fora das quatro linhas da Constituição.
A trama que culminou no episódio de 8 de janeiro de 2023, hoje investigada pelas autoridades para saber se realmente houve uma tentativa para um possível golpe de Estado por parte do presidente derrotado Jair Bolsonaro, sustentou o discurso lulista pela garantia da democracia e gerou uma certa lua de mel do presidente eleito com os brasileiros, naquele período. Na prática, todavia, Lula retomou uma agenda internacional de aproximação com ditaduras e autocracias e fez condenações a Estados reconhecidos pelo mundo Ocidental como democracias instaladas. Na guerra russo-ucraniana, Lula pendeu para a Rússia, de Vladimir Putin e no conflito entre Israel e o Hamas, Lula atacou mais a nação do que os terroristas.
Esse comportamento dúbio no plano internacional e uma grande crítica ao modelo institucional do Supremo Tribunal Federal e as decisões monocráticas dos ministros, aliado à figura particular de Alexandre de Moraes, tido como um algoz de Jair Bolsonaro, começaram a fazer ruir esse entendimento de um Lula defensor da democracia. Evidentemente, que esse contexto ganha ainda mais notoriedade em detrimento de um cenário econômico altamente problemático, que tem feito a popularidade de Lula desabar nas pesquisas de opinião. No mais recente levantamento feito pelo PoderData, apenas 1/3 da população considera o governo Lula melhor que o de seu antecessor Bolsonaro, enquanto 44% acham que estava melhor com o antigo presidente.
Nesse ínterim, a licença tirada por Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, de seu mandato como deputado federal para fazer uma cruzada internacional pela democracia no Brasil, tem base em outras tentativas similares na América do Sul. Na Venezuela, Edmundo González Urrutia tem caminhado mundo a fora na expectativa de que seja reconhecido presidente do país, após uma série de denúncias sobre fraude nas eleições nacionais. Já, na Bolívia, Evo Morales se asilou na Argentina por acusar seus opositores de tentarem o prender politicamente. Com o impedimento judicial da candidatura de Jair Bolsonaro, há um grande movimento para fazer de seu filho o nome para representá-lo nas urnas. Eduardo Bolsonaro, mesmo sem qualquer condenação ou ameaça de perda de direitos políticos, resolveu se auto exilar num ato que parece muito mais a elaboração de uma narrativa para o pleito do próximo ano.
Essa mesma ideia foi adotada por Jean Wyllys, ex-BBB, deputado federal eleito pelo PSOL, do Rio de Janeiro, que abandonou seu mandato para se exilar na França contra a ameaça que representava Jair Bolsonaro. O resultado para o ex-deputado foi pouco exitoso e ele caiu em um grande ostracismo. Entretanto, o que se mostra cada vez mais real é que independentemente do espectro político, seja da direita ou da esquerda, conservador ou progressista, a ideia de imputar ao outro lado a pecha de antidemocrático é uma constante na política.
Há uma dicotomia no pensamento brasileiro, porque apesar da supervalorização da democracia, o povo tem grande predileção por figuras políticas fortes. O caudilhismo e o coronelismo não se sustentaram à toa no Brasil. Até hoje há grandes referências a Getúlio Vargas, que implementou um regime ditatorial de 15 anos, quase o mesmo período que a ditadura militar. Médici, que hoje, está apagado da história foi um dos presidentes mais populares de toda a trajetória republicana brasileira. O milagre econômico, com crescimento de 11% do PIB anualmente, as super obras, como Itaipu, ponte Rio-Niterói, usina de Angra e a sua participação quase que como técnico para a convocação da Copa de 70 fizeram da Arena, o seu partido, o maior do mundo, em termos eleitorais.
Apesar de compreender pouco as exigências que a democracia traz, a unanimidade da população em aceitá-la virou uma importante arma de narrativas e construção de posicionamentos para quem quer tirar proveito disso. Por mais problemática que a política brasileira possa ser, vale sempre lembrar que as instituições nacionais funcionam. Não é fácil um país passar por dois traumáticos impeachments e a República continuar sem maiores consequências. Instituições fortes são pilares fundamentais para uma democracia verdadeira. Lamentavelmente, a união de discursos entre Lula e Bolsonaro, na defesa dessa democracia, não é real e tem objetivo apenas a defesa de seus interesses particulares. Resistir à tentação de ser intolerante e trabalhar por consensos que unam verdadeiramente o país, talvez seja dos mais difíceis mandamentos democráticos, mas a busca em o praticar pode ajudar muito a se encontrar um rumo mais próspero para o Brasil.