BRASÍLIA - Tudo gira em torno do javali. Sob o pretexto de proteger lavouras e rebanhos, o governo de Jair Bolsonaro autorizou arsenais para civis irem a campo eliminar a espécie considerada praga na agropecuária. Mas a maioria dos caçadores não caça nada, só aproveita as regras para obter armas pesadas. E o que seria a solução para erradicar o problema acabou criando novos: áreas de incidência surgindo de forma suspeita, armas usadas para acertos de contas, animais em extinção abatidos e um mercado de caça recreativa no qual o javali vivo é negócio – o que contradiz o plano de proteção ao agronegócio.
A reportagem do Estadão cruzou processos judiciais, autos de infração ambiental, informações de grupos de caçadores, relatórios do Ibama e do Tribunal de Contas da União (TCU). A conclusão é a de que uma parte expressiva do interesse nos javalis não se baseia no controle eficiente da praga, mas em subterfúgio para quem quer ostentar armas e viver a aventura de derrubar animais à bala, como nos safáris do exterior.
Quanto maior o bicho abatido, mais prestígio para o caçador. Os machos podem pesar mais de 200 quilos e são os mais visados, ao contrário do orientado pelas boas práticas de controle. O recomendado é exterminar fêmeas e filhotes para cessar a reprodução. Mas estes aparecem em vídeos divulgados em grupos de caçadores sendo soltos e até comercializados. Um casal de filhotes pode ser encontrado à venda ilegalmente na internet por R$ 1,3 mil.
A Associação Brasileira de Caçadores afirma que irregularidades são casos isolados dentro do “maior grupo voluntário ambiental do Brasil” e que a crítica sobre prejuízos ao agro não passa de “narrativa”. A entidade defende a recreação como “contrapartida cultural” à atividade que demanda altos custos e, sobre a exposição dos grandes javalis na internet, entende que “mostrar leitõezinhos mortos” não faria bem à “imagem” dos caçadores (leia mais abaixo).
O número de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores de armas) aumentou sete vezes desde 2018. Na gestão Bolsonaro, caçadores podiam ter 30 armas, sendo 15 de uso restrito, e até 165 mil munições por ano. Na prática, o crescimento não serviu à caça, mas à ampliação de arsenais privados – agora, o limite é de seis armas e até 3 mil munições, com necessidade de autorização pelo Ibama.
Uma auditoria do TCU revelada pelo Estadão confirmou que o objetivo da maioria dos 574,6 mil caçadores autorizados pelo Exército entre 2019 e 2022 não era matar javalis. Só 59,6 mil deles solicitaram ao Ibama, pelo menos uma vez, autorização para caçar – o equivalente a 10,3% do total. Dos 50 caçadores com os maiores arsenais, só 22 pediram alguma autorização para ir a campo.
“Há uma redução do potencial de controle dessas espécies se comparado com o cenário em que todos os caçadores registrados executam o manejo desses animais”, frisa o relatório.
Direto ao ponto
De fato, os javalis são um problema sério no Brasil e no mundo. O bicho originário da Europa, Ásia e norte da África foi introduzido no País a partir dos anos 1960 e testado como alternativa ao consumo da carne de porco. O plano fracassou e o animal da espécie sus scrofa nunca foi controlado, apesar de ser o único que pode ser caçado no território nacional sob determinadas regras editadas em 2013.
O javali se reproduz com facilidade, come o que vê pela frente e pode destruir grandes partes de lavouras. Também oferece riscos à pecuária e aos humanos com transmissão de doenças e poluição de nascentes. Com gestações que duram menos de quatro meses, as fêmeas têm ninhadas de até 12 filhotes, que começam a reprodução a partir dos seis meses de vida.
Com o passar dos anos, os javalis aparecem em mais e mais cidades. Em 2019, houve registros do animal invasor em 826 municípios. Em 2022, em 2.010. O ritmo da disseminação cresceu no governo Bolsonaro, responsável pela política armamentista que popularizou os CACs.
Esse alastramento do javali pelo Brasil tem indícios de ser artificial. Isso porque o mapa da distribuição indica “saltos geográficos” na incidência e agentes ambientais relatam o avistamento de javalis até em ilhas. Além disso, há casos de cidades que saíram do zero para mais de mil animais abatidos no período, caso de Areal (RJ) e Uberlândia (MG).
Os dados oficiais são vistos com ressalvas. É que eles são autodeclarados pelos caçadores no Sistema de Informação de Manejo de Fauna (Simaf), do Ibama. De abril de 2019 a dezembro de 2023, foram relatados 773 mil javalis abatidos. Mas só 330 mil foram de alguma forma “manejados”. Ou seja, tiveram dados sobre sexo, tamanho e idade registrados.
Em janeiro de 2024, por exemplo, os caçadores registraram 53 mil abatimentos, mas só prestaram informações sobre 16 mil animais. Em algumas regiões, os machos adultos passam dos 60% dos javalis mortos. Contudo, técnicos do Ibama consultados disseram que, depois que a auditoria do TCU veio à tona, começaram a perceber relatórios com mais fêmeas e animais jovens.
Nos Estados Unidos, os javalis também são um problema. Um estudo publicado em 2023 por pesquisadores do Mississippi e da Carolina do Sul indicou um cenário similar ao brasileiro. A pesquisa concluiu que a disseminação se dá por ação humana e que a recreação e o mercado que a atividade movimenta contribuem para a proliferação. “Em estados onde a caça de javali é socialmente aceita e tratada como um passatempo, a distribuição e a taxa de expansão foram maiores”, diz o estudo.
Os crimes paralelos de caçadores
Uma consequência da popularização das armas para conter javalis aparece em processos criminais que tramitam nos tribunais de Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Distrito Federal. Há casos de caçadores de javali respondendo, por exemplo, por uso de armas contra o amante da esposa, em briga de trânsito, em intimidação e até em homicídio.
Os documentos também contam histórias de caçadores flagrados pela polícia com armas irregulares e transportando animais vivos, o que é ilegal e mantém ameaças para fazendas.
Há ainda um outro efeito colateral. Os caçadores não limitam a mira durante as empreitadas e acabam abatendo animais semelhantes, como o queixada e o cateto, que não podem ser caçados. Veados, búfalos e até onças-pintadas, ameaçadas de extinção, também acabam tombando pelo caminho.
Alguns dos principais defensores da caça no País acumulam infrações ambientais.
Dono do maior canal do ramo no YouTube, Mario Knichalla Neto chegou a ser preso após ser flagrado pela polícia com uma arma irregular, couros de onça-pintada, de jacaré, de queixada, de suçuarana e de sucuri, além de chifres e cabeças de veado. Ele afirmou às autoridades que o material pertenceria na verdade a um tio e seria uma “herança familiar”, fruto da “origem no campo”.
Ao Estadão, a defesa dele afirmou que Knichalla “sempre esteve atento e obediente à legislação vigente, apesar da insegurança jurídica que vivemos onde, constantemente, a legislação atinente é modificada”.
Em um vídeo publicado em seu canal na internet, ele faz piada sobre o tamanho de um animal abatido durante um dia de caçada. “Ele deve ter matado um leitãozinho, para estar falando desse jeito. Não deve valer o tiro”, brincou Knichalla. A preferência por animais grandes é um dos principais problemas da caça recreativa, segundo especialistas.
Outro expoente da caça, Mardqueu Filho, o Samurai Caçador, também é alvo do Ibama em autos de infração que somam R$ 120 mil. Um dos casos é por caçar búfalos. Por meio do advogado, ele afirmou entender que também se trata de uma espécie invasora e portanto passível de ser abatida. Ele recorre da multa.
Presidente da associação dos caçadores, Rafael Salerno foi autuado por infrações ambientais em Monte Azul (SP), Florianópolis (SC) e Paracatu (MG). Uma das multas é por “explorar imagem de dois animais silvestres (onça-pintada), de espécie ameaçada de extinção, em situação de abuso e maus-tratos”. Ele afirma ser perseguido pelo Ibama.
Caça de javali virou mercado de aventura
Enquanto o problema do javali se aprofunda, a caça se consolida como um mercado de aventura. Há um público armamentista que gosta de sair à noite para matar javalis a tiros e exibi-los em grupos especializados e nas redes sociais.
A reportagem perguntou qual era o procedimento a um serviço de caça organizado por um clube de Goiânia (GO).
É só entrar no Ibama e fazer o cadastro, com o CPF. Se você quiser, peço à secretária para fazer para você. Só tem que enturmar com alguma turma para poder caçar, né?! Mas aí a sua documentação pessoal, no Ibama, faz pelo site. Aí você tem que fazer contato com a turma de caça para eles te colocarem no grupo de manejo deles”
Responsável por clube de tiro de Goiânia
A manutenção dos javalis vivos é uma preocupação que aparece em grupos de caçadores monitorados pelo Ibama. “Se estes javalis acabarem ou diminuírem a ponto do Ibama encerrar este controle, teríamos de voltar a atirar somente em clube de tiro”, diz um caçador em publicação registrada em relatório do órgão ambiental.
A prática demanda investimento elevado. Além de armas e munições capazes de perfurar o couro do animal, há uma série de itens e dispositivos tecnológicos atrelados. As caçadas costumam ter sistemas para visão noturna, cães de raças específicas treinados e equipados com coletes e GSP, rádios para comunicação, drones e veículos adaptados. Estima-se em cerca de R$ 2 mil o custo de abatimento de cada javali.
Técnicos do setor privado que atuam no controle de pragas, pesquisadores e agentes ambientais concordam que a arma de fogo é fundamental para o controle dos bichos, mas a caça recreativa tem outro propósito. Isso porque o objetivo central dela não é eliminar a espécie invasora da forma mais eficaz e com os melhores métodos ambientais e sanitários.
Os javalis podem transmitir doenças e precisam ser descartados de forma apropriada. É comum que a carne do javali seja armazenada ou distribuída depois das caçadas, o que também oferece ameaças à saúde coletiva.
Por que a caça recreativa prolifera os javalis?
A pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia Clarissa Rosa, doutora em ecologia aplicada e considerada uma das principais referências na pesquisa científica sobre javalis, é taxativa: “Precisamos urgentemente criar mecanismos para evitar a caça recreativa, com punições severas.”
A especialista reforça que a caça recreativa mira os animais maiores, que já passaram do auge da capacidade reprodutiva. “Não basta somente eliminar animais, é preciso eliminar os que mais contribuem para o aumento populacional, que são fêmeas, filhotes e machos jovens – que são os com dentes menores e, por isso, muitas vezes não são alvo da caça esportiva. Se eliminam somente os maiores, abre-se espaço para machos jovens, no auge da capacidade reprodutiva. E aí acabam contribuindo com aumento da população, ao invés de reduzi-la”, explicou.
“Não quer dizer que a caça de machos grandes deve acabar. Os adultos causam estragos tremendos em lavouras, então é natural que também sejam alvo de caça de controle. Porém, fêmeas e filhotes devem sempre ser prioridade”, completou.
Rosa também destaca que a proliferação dos javalis pelo território nacional é influenciada por caçadores que atuam à margem da lei. Ela cita casos de indivíduos que compram javalis de produtores rurais que criam os animais para subsistência e depois soltam em outras regiões. E situações em que caçadores capturam os animais para soltá-los em outras localidades.
A pesquisadora ressaltou também que o tema é complexo porque há um universo de produtores rurais que criam esses animais para consumo próprio, sem saber que a criação é ilegal, e que acabam sendo eles mesmos prejudicados pela ação dos javalis em lavouras de subsistência. Para esses casos, ela defende uma abordagem menos punitiva.
Professor de Saúde Única, Zoonoses e Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná, Alexander Biondo é responsável por algumas das mais recentes pesquisas sobre a questão do javali e afirma que a caça tem piorado o problema.
O especialista alerta que os crimes ambientais acontecem nos rincões, em áreas afastadas, longe da fiscalização dos órgãos ambientais e policiais. Por isso, acabam subnotificados.
“Temos que abrir os olhos das pessoas para esse mal silencioso que acontece no meio do mato matando jacaré, capivara, tatu, veados, onças”, frisou. “A autorização para a caça de javali é de 2013. Não dá para achar que ela vai resolver. Não resolveu e o que teve foi um espalhamento. Caçadores abatem o macho que tem presas grandes e pegam a cabeça para pendurar na parede, pegam fêmeas e filhotes para soltar futuramente. Não há discussão para a erradicação.”
O especialista defende que a eliminação seja de feita de forma especializada e profissional porque os riscos oferecidos pelo javali à produção agropecuária e à fauna e flora nativa são enormes. Além de destruir lavouras, os invasores podem disseminar doenças para suínos e reduzir a oferta de alimentos úteis a espécies nativas.
“O controle não deve ser feito por pessoas sem capacitação que saem no fim de semana com R$ 100 mil investidos em armas, roupas camufladas, cães e drones. A caça virou um negócio à parte. E esses grupos estão caçando javalis e fauna nativa como nunca se viu neste país”, disse.
Ibama prepara ‘raio-x’ da caça do javali e pode rever regras
O Ibama criou um grupo de trabalho para discutir internamente o problema dos javalis e revisar regras que norteiam o chamado “manejo ativo” da espécie em todo o território brasileiro.
A proposta é fazer um pente-fino nas normas que regem a atividade e rediscutir desde a maneira como os dados são informados pelos caçadores e fazer uma espécie de “raio-x” em todas as informações disponíveis.
Os técnicos vão analisar, por exemplo, quais são as armas e calibres mais e menos utilizados nas ações, quem são os caçadores que caçam e não caçam e onde praticam a atividade. A medida permitirá o cruzamento de informações sobre existência de caçadores e incidência de javalis e poderá nortear novas medidas para dar mais eficácia ao controle da praga.
Uma das medidas em análise é divulgar publicamente as fazendas para as quais há autorizações de manejo. Uma parte dos técnicos entende que essa informação é importante para a segurança pública e para evitar que caçadores entrem indevidamente em áreas privadas para as quais não foram autorizados.
O que diz a Associação Brasileira de Caçadores
O presidente da Associação Brasileira de Caçadores, Rafael Salerno, afirma que os argumentos de que a caça recreativa dos javalis prejudica o agronegócio não passa de uma “narrativa” e que a dispersão dos animais se dá pela burocracia estatal que é mais lenta do que a reprodução dos bichos.
O baixo percentual de caçadores que efetivamente caçam, segundo ele, se deve a uma mera formalidade de cadastro. É que para obter o chamado Certificado de Registro junto ao Exército bastava assinalar “atirador” e “caçador” para que o título fosse liberado, sem exigências adicionais. Por conveniência, muita gente pedia as duas coisas.
“Era como se, ao tirar a CNH, você pudesse assinalar que estará habilitado para moto, caminhão e ônibus”, comparou.
Salerno afirma que casos de abatimento de fauna nativa são casos isolados e não podem manchar o que ele define como “o maior grupo ambiental do Brasil”. Ele também nega que os caçadores contribuam para distribuir populações de javalis pelo País.
“Seria assumir que a PRF não trabalhou, as patrulhas e o Ibama não trabalharam e que o aparato de vigilância ambiental e sanitária não serviram para nada. Do contrário, é papo de quem quer vender narrativa”, disse.
Salerno defende a caça recreativa, apontada como nociva por especialistas ambientais. “Enquanto prática amadora e voluntária, tem que ter contrapartida. Se ela não é financeira, envolve o que considero uma questão cultural. Se a caça nos rincões é uma atividade de lazer, não entendo a celeuma com relação a isso. Existe um congraçamento. A humanidade faz isso há milhares de anos”, disse.
Questionado sobre a predileção dos caçadores em exibir os maiores animais abatidos, ele diz que é preciso se preocupar com a imagem do segmento. “Não é sempre que são os grandes. O que acontece é que hoje os caçadores tentam manter um padrão mínimo de imagem pública. Não fica bem exibir determinados conteúdos. Para que vou mostrar uma fieira com dez leitõezinhos mortos?”, comentou.
O que diz a bancada do agronegócio
A reportagem apresentou à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) os principais pontos discutidos pela reportagem, como os riscos da caça sem critérios técnicos ao próprio agronegócio, o universo de caçadores que não caçam e os problemas colaterais da prática como recreação.
Em nota, a FPA destacou que “qualquer política de controle populacional deve ser baseada em dados científicos e métodos comprovadamente eficazes” e que considera “urgente implementar um programa eficiente para o controle populacional de javalis”.
“Se for comprovado que a caça recreativa é eficaz nesse controle, a FPA defende que ela seja incluída como uma ferramenta adicional”, destacou.
A FPA pontuou que o problema se agravou com a “inação do governo”, que suspendeu temporariamente autorizações para o manejo no ano passado. “Após essa mudança, a emissão de licenças foi interrompida, impedindo o controle populacional desses animais por um período prolongado”, destacou.
O que diz o líder dos CACs no Congresso
O deputado Marcos Pollon (PL-MS) defende os caçadores como a “ferramenta mais eficaz que temos contra as espécies invasores” pois “o estado brasileiro falhou em proteger o próprio patrimônio biológico”. O parlamentar foi eleito com o apoio dos CACs depois de presidir a Associação Proarmas, a maior entidade representativa do segmento.
Ele considera que o País não incentiva a caça e dificulta com burocracia os interessados pela atividade. “O caçador legalizado passa por uma verdadeira ‘via crucis’ que pode se prolongar por anos até que consiga toda a documentação e autorizações necessárias para realizar a atividade 100% dentro da lei”, disse.
O líder dos armamentistas minimizou os números apresentados na auditoria do TCU por considerar o relatório “enviesado” pois foi realizado “a pedido do PSOL” e “não conseguiu sequer provar que houve desvio de finalidade por parte dos caçadores”.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.