A implementação de câmeras de monitoramento com uso de inteligência artificial para fazer reconhecimento facial ganhou espaço nas maiores capitais do Brasil. A proposta aparece nos planos de governo de candidatos a prefeito no Rio de Janeiro, Fortaleza, Salvador e Belo Horizonte, segundo estudo realizado pelo think thank Reglab.
A popularidade da medida entre os candidatos reflete a preocupação dos eleitores com a segurança pública, mas especialistas afirmam que a tecnologia ainda não é boa o suficiente para ser usada em larga escala, dizem que o algoritmo é enviesado e falho ao identificar pessoas pretas e cobram diretrizes que definam regras para sua utilização.
Além das cidades mencionadas na pesquisa “Cidades do Amanhã – Inovação e Tecnologia nas Eleições Municipais”, São Paulo tinha 13 mil câmeras com reconhecimento facial espalhadas pela cidade em julho. A meta de Ricardo Nunes (MDB) é chegar a 20 mil unidades até o final do ano. O prefeito promete ampliar o Smart Sampa, como o programa é chamado, em um eventual segundo mandato, mas não apresenta uma meta no plano de governo.
Pedro Henrique Ramos, autor do estudo e diretor-executivo do Reglab, avalia que é urgente a edição de regras e diretrizes federais que determinem quais são os usos permitidos ou proibidos do reconhecimento facial na segurança pública.
“Há candidatos que falam expressamente que querem usar o monitoramento para prever ações criminosas”, disse ele. “Isso é muito perigoso. É um tipo de uso muito complexo. Eu me preocupo com essa proliferação de propostas sobre o tema porque elas precisam ser mais amadurecidas no debate público antes de serem implementadas”, declarou.
André Fernandes (PL), candidato a prefeito de Fortaleza, propõe usar a tecnologia para identificar criminosos e pessoas desaparecidas, mas também para se antecipar a possíveis crimes. “Será implementado um sistema de análise de dados e inteligência artificial, capaz de identificar padrões e prever ações criminosas”, diz seu programa de governo.
Outro candidato na capital cearense, Capitão Wagner (União), propõe utilizar “algoritmos de reconhecimento facial, leitura de placas de veículos e outras formas de análise automatizada para identificar padrões e atividades suspeitas”.
No Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD) quer instalar mais câmeras de segurança capazes de identificar e monitorar veículos roubados, mas não faz menção explícita ao uso de reconhecimento facial em seu plano de governo. Alexandre Ramagem (PL), seu principal adversário, promete fazer “investimento massivo” na compra de equipamentos para identificar veículos e pessoas.
Propostas no mesmo sentido aparecem em Salvador com o prefeito Bruno Reis (União) — ele menciona inteligência artificial, mas não especifica se há reconhecimento facial — e em Belo Horizonte, onde Carlos Viana (MDB) propõe a criação de uma Central Integrada de Videomonitoramento e inteligência artificial para “auxiliar na análise comportamental social do crime ou contravenção”.
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Marina Atoji, diretora de programas da Transparência Brasil, afirma que a Organização das Nações Unidas (ONU) e outros órgãos internacionais recomendam, senão o banimento, ao menos uma espécie de moratória quanto ao uso do reconhecimento facial na segurança pública para que haja mais tempo para a tecnologia se aprimorar o suficiente e poder ser aplicada em um tema tão sensível.
Segundo ela, atualmente o algoritmo utilizado é enviesado e tende a apontar pessoas vulneráveis, “notadamente pessoas pretas”, como suspeitas, problema que se torna ainda mais grave diante da realidade brasileira. “A tecnologia não é avançada o suficiente para identificar e diferenciar pessoas pretas de forma competente. Há um alto risco de reconhecimento errado e alto índice de injustiças quando você usa essa tecnologia, que por enquanto é mal treinada e pouco precisa para essa finalidade”, declarou a especialista.
Ela também critica propostas que falam em prever crimes. “Dados gerados por tecnologia de inteligência artificial podem alimentar a inteligência policial”, disse Atoji, referindo-se a decisões sobre como distribuir o policiamento, por exemplo. “Agora, prever crimes é uma coisa que nenhuma tecnologia consegue oferecer até o momento”, completou.
Outro ponto apontado por ela é que a Lei Geral de Proteção de Dados diz que o uso de dados pessoais para fins de segurança pública deve ser regulamentado em uma outra lei, que ainda não existe. Dessa forma, ainda não há diretrizes específicas sobre como essas informações devem ser armazenadas, sobre os testes necessários antes de o reconhecimento facial ser colocado em funcionamento e sobre quais medidas precisam ser tomadas pelos governos para garantir a segurança dos dados coletados.
Fortaleza é a capital com mais propostas de inovação, e BH a com menos
O estudo do Reglab analisou como 13 candidatos a prefeito de cinco capitais abordam propostas de tecnologia e inovação em seus planos de governo. A análise se ateve aos mais bem colocados em pesquisas eleitorais realizadas logo após o início da campanha em agosto.
Foram identificadas 147 propostas, sendo a maior parte delas (46%) voltada para a área de cidades inteligentes, ou seja, medidas que buscam usar tecnologia para tornar as prefeituras mais eficientes e aumentar a qualidade de vida da população — como a criação de um aplicativo para reunir todos os serviços públicos municipais, ou a marcação de consultas e exames médicos por meio do WhatsApp.
O estudo destaca Fortaleza como a capital com mais propostas envolvendo tecnologia e inovação (51). A cidade tem se tornado referência no setor ao atrair investimentos para a construção de centros de processamento de dados e receber a maior parte dos cabos submarinos que ligam o Brasil a outros continentes. Na outra ponta está Belo Horizonte, com apenas 14 propostas.
Pedro Henrique Ramos, do Reglab, explica que os números servem para medir a temperatura do debate político sobre o tema em cada cidade. “Fortaleza tem recebido cada vez mais investimentos em tecnologia e há cada vez mais pessoas empregadas nesse setor. Então, isso começa a ser algo interessante de ser trabalhado na campanha, já que é algo caro aos eleitores da cidade”, disse.
Ele, porém, prega cautela ao analisar o caso da capital mineira e diz que há duas interpretações possíveis. “A primeira é que Belo Horizonte já é um polo tecnológico, e isso não é mais uma prioridade nas campanhas políticas ou para o eleitorado, que enxerga outros pontos como mais importantes”, avaliou Ramos. “Outra hipótese é que realmente esse tema não seja um ponto principal das plataformas dos candidatos mais competitivos”, concluiu.
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