Mesmo não fazendo parte da alçada dos Executivos municipais, pautas como legalização das drogas, aborto e “ideologia de gênero” viraram tema da disputa pela prefeitura de Cuiabá (MT), um dos polos do agronegócio do País. Com acenos ao eleitor cristão e conservador, o candidato petista Lúdio Cabral afirmou em seu programa eleitoral de estreia no segundo turno na capital mato-grossense que é contrário às pautas – mesma posição que seu adversário, Abílio Brunini (PL).
“Eu sou contra o aborto, sou contra a liberação de drogas, e jamais irei implantar em nenhuma escola nada relacionado à ideologia de gênero. Minha criação em uma família cristã, o meu juramento de proteger a vida como médico e a minha vida como pai e esposo provam o que eu digo”, disse o candidato.
Cabral afirmou na peça eleitoral que foi motivado a deixar clara sua posição sobre os temas porque o adversário político “espalha fake news, mente e tenta confundir” as pessoas com “medo”. O posicionamento foi questionado por Brunini, que em debate eleitoral nesta terça-feira, 23, questionou o petista sobre os motivos para ele permanecer no partido.
“Se você discorda de todas as coisas do seu partido, por que você ainda continua no PT? São 28 anos dentro desse partido. Se o Lúdio é tão certinho assim, por que ele ainda está no PT?”, disse Brunini, questionando ainda se é possível “servir a dois senhores”. O candidato do PL publicou o trecho do debate em seu perfil no Instagram.
Questionado pelo Estadão, o petista afirmou saber que as pautas às quais se posicionou são legisladas pelo Congresso Nacional, afirmando que, “em respeito à população de Cuiabá”, tem discutido “os problemas reais da cidade e as propostas concretas para resolvê-los”. Lúdio Cabral responsabilizou o candidato do PL por trazer a temática para o confronto municipal.
“O candidato adversário trouxe a pauta de costumes, que compete ao Legislativo Federal, em uma eleição do Executivo municipal. Fazer isso é desrespeitar a população que sofre com problemas concretos. Ao fazer isso, o candidato adversário despreza o princípio democrático de debate adequado ao contexto eleitoral”, disse em nota.
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Embora o estatuto do partido não determine que os filiados precisem adotar posicionamento favorável aos temas, as pautas em questão são historicamente associadas e defendidas por movimentos progressistas e partidos à esquerda no espectro político. Ao Estadão, Cabral afirmou que “o Partido dos Trabalhadores é um partido plural, e a visão de cada filiado é respeitada. Não há qualquer conflito em relação a isso”.
O candidato apoiado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) terminou a primeira etapa do pleito com 39,61% dos votos válidos, ante 28,31% do petista. Segundo o levantamento mais recente do instituto AtlasIntel, divulgado nesta terça-feira, 22, Brunini tem 52,6% das intenções de voto, contra 45,7% em Cabral.
Além da peça eleitoral, Cabral publicou uma “carta aos cristãos”, em que fala sobre propostas que pretende implementar em parcerias com igrejas, como ampliar o número de salas de aulas em creches, recuperação de dependentes químicos, entre outros.
“Meu compromisso, acima de qualquer interesse particular ou partidário, é fazer que a nossa gestão seja resposta de orações, colocando o nosso coração na fonte certa que é Jesus”, diz trecho da carta publicada em seu perfil no Instagram no último dia 10.
Embora o candidato repita o gesto de “faz o L”, usado na campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2022, já que seu nome possui a mesma inicial que o do presidente, Lula não é uma figura frequente no Instagram de Cabral. O candidato também não adotou o vermelho, a cor do partido, na comunicação da campanha.
Os ministros de Lula, entretanto, bem como o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) fizeram parte dos materiais de campanha dele no segundo turno. Apoiam a candidatura de Cabral o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro – pai da vice-prefeita na chapa, Rafaela Fávaro –, o ministro dos Transportes, Renan Filho, e o ministro da Educação, Camilo Santana.
Incoerência mira em ‘não rejeição’, diz especialista
Apesar de incoerente com o posicionamento histórico do campo progressista, a posição sustentada por Cabral indica uma tentativa de evitar a rejeição do eleitorado, uma vez que a disputa de segundo turno, muitas vezes, tem mais a ver com “não rejeição” do que, de fato, pela escolha de um dos candidatos.
Quem analisa é o cientista político e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) Tiago Valenciano. “O PT precisa voltar a governar capitais e cidades importantes. Não adianta nada você ter um partido com o presidente da República com muita força, ressurgindo em algumas assembleias estaduais, mantendo a sua base de deputados federais, se você não governar município, que é onde o cidadão sente a diferença, faz a coisa acontecer e consegue mudar alguma coisa lá na ponta”, afirmou.
Conforme analisa Valenciano, o resultado das eleições municipais indicou uma tendência do eleitorado por candidatos de direita e centro-direita, o que pode incentivar um cálculo “prático e direto” do candidato, em que o discurso é ajustado para um tom “apaziguador”. “É incoerente? É. Mas é o cálculo da não rejeição do segundo turno”, disse.
Nas redes sociais, usuários comentaram os posicionamentos do candidato afirmando que “enquanto a população estiver sem o básico”, esse tipo de pauta “sempre será um problema para a esquerda”, já que a população do Estado é conservadora. “Se quisermos um dia discutir essas pautas: bora entregar saúde, educação e segurança para a população”, afirmou um internauta.
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