Berço do Bolsa Família é esquecido pelo Congresso

Escolhida para testar programa social em 2003, Guaribas votou em candidato derrotado em 2018. Como resultado, foi excluída do orçamento secreto e das demais emendas

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Atualização:

ENVIADO ESPECIAL A GUARIBAS (PI) - No sopé da Serra das Confusões, no semiárido piauiense, Guaribas ficou conhecida nacionalmente como um dos municípios mais pobres do país. A 660 quilômetros de Teresina, a cidade virou local de testes do programa Fome Zero, que mais tarde daria origem ao Bolsa Família. Ao longo de quase 20 anos, o município conseguiu melhorar indicadores sociais, mas continua entre os 100 com o menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) no Brasil. Mesmo assim, seus 4.500 moradores – antes eram 4.200 – são esquecidos especialmente pelo Congresso na divisão de recursos federais.

Ao concentrar os votos num candidato a deputado federal derrotado nas eleições de 2018, Guaribas ficou sem parlamentar para defendê-la na partilha das verbas de Brasília – e terminou prejudicada na distribuição do dinheiro nos últimos quatro anos. A cidade piloto do Bolsa Família, famosa por suas carências, terminou esquecida mais uma vez.

Em Guaribas (PI), o acesso à água continua sendo um problema na zona rural. Moradores também reclamam das estradas precárias da região Foto: Wilton Junior

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Reportagem divulgada na edição de ontem do jornal mostrou que o fenômeno dos “desertos políticos” é nacional. Guaribas é uma das 522 cidades penalizadas por concentrarem votos em candidatos não eleitos à Câmara. Nessas cidades vivem quase 13 milhões de pessoas.

Na mesma região de Guaribas, no Sul do Piauí, há outros 17 municípios ignorados no repasse de verbas. O berço do Fome Zero e do Bolsa Família é a última no traçado da PI-470, depois da cidade de Caracol. Em Guaribas, as principais ruas foram asfaltadas; outras são pavimentadas com paralelepípedos e o restante é de terreno arenoso. As casas são simples e têm reboco; aqui e ali ainda se veem construções de tijolo de barro aparente.

Em 2003, a moradora Raimundinha Correia da Silva Rocha, hoje com 61 anos, foi entrevistada por reportagem do Estadão sobre o lançamento do Bolsa Família. Ela lembra do tempo em que tinha de caminhar quilômetros todos os dias para buscar água, o que tornava a vida “trabalhosa”. A água chegou à torneira da casa dela e o benefício do Bolsa Família, hoje Auxílio Brasil, caiu na conta. Raimundinha disse, porém, que o atendimento de saúde continua “ruim”. Para buscar atendimento, a família precisa ir a São Raimundo Nonato, a duas horas e meia de distância em estradas precárias.

No sertão do Piauí, Guaribas é um dos municípios mais pobres do Brasil. Base eleitoral de um político derrotado em 2003, cidade ficou excluída do orçamento secreto Foto: Wilton Junior

Nos últimos quatro anos, a prefeitura de Guaribas recebeu 33% a menos de emendas parlamentares de todo tipo por morador, na comparação com a média das cidades pequenas (menos de 10 mil habitantes) do Piauí. Foram apenas R$ 2,6 milhões, desde janeiro de 2019. O município também não recebeu nada do orçamento secreto, o esquema criado pelo presidente Jair Bolsonaro que repassou aos parlamentares a decisão sobre onde alocar dinheiro público sem seguir critérios técnicos, o que contraria a Constituição e todas as leis orçamentárias.

O agricultor Germano Mariano da Silva, à época com 49 anos, foi outro morador ouvido pela reportagem em 2003. “Aqui tem muita ‘carenteza’, mas pior que a da fome é a da doença”, disse ele, na ocasião.

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Em 2003, o agricultor Germano Mariano da Silva foi ouvido em reportagem do Estadão sobre o antigo programa Fome Zero, depois rebatizado de Bolsa Família. Quase 20 anos depois, ele revê a reportagem Foto: Wilton Junior

Em junho passado, a reportagem reencontrou “seu” Germano na cidade. Os cabelos agora são grisalhos. A maioria dos oito filhos deixou Guaribas. De lá para cá, a cidade ganhou calçamento, energia elétrica, água encanada e até internet, mas o problema social persiste.

Na prática, Guaribas avançou com a chegada da água encanada e do calçamento ao centro da cidade, mas ficou nisso. “Na oportunidade que eu fiz a entrevista aqui, tem uns 20 anos, eu falei sobre a água. A ‘Guariba’ era pobre e ‘descoligada’ do Brasil”, descreve ele. Na zona rural da cidade, as estradas continuam precárias e o acesso à água encanada é intermitente, quando existe.

Em 2003, a família do agricultor Germano Mariano da Silva foi entrevistada pela reportagem do Estadão. Quase 20 anos depois, Germano diz que a vida melhorou, mas alguns problemas persistem Foto: Wilton Junior

O comerciante Alaylldo Dias de Miranda, 33, observa que os problemas de falta de água persistem na zona rural de Guaribas, em distritos como o do Brejão e do Cajueiro. “No Brejão, por exemplo, tem a encanação feita, mas a água não vai até lá”, diz. Ele observa que os moradores da cidade enfrentam problemas de energia, precariedade das estradas e falta de renda. “As estradas municipais, que dão acesso às outras cidades, ainda é (sic) tudo de terra”, destaca. “Na questão do emprego, a maioria vive da roça. Fora isso, só os aposentados e quem é concursado do município.”

Derrotados

Os votos de Guaribas na eleição para a Câmara, em 2018, se concentraram nos ex-deputados Paes Landim (PTB) e Heráclito Fortes (União Brasil), que não conseguiram se eleger. Heráclito obteve quase 40% dos votos da cidade.

“Nesses municípios todos (do sul do Piauí), eu arrumei algumas verbas de infraestrutura, calçamento. Mas depois me pegaram e me amordaçaram. Foi uma perseguição do PP com o PT junto. O PT e o Ciro (Nogueira, ministro da Casa Civil). Vieram pra cima de maneira impiedosa”, queixa-se Heráclito. Atualmente, ele vive em São Paulo (SP) e não é candidato nas eleições de outubro.

No sopé da Serra das Confusões, Guaribas é uma das 100 cidades com menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) no Brasil Foto: Wilton Junior

Guaribas é governada pelo prefeito Joércio Matias de Andrade (MDB), ligado a Heráclito e Paes Landim. O vice Joziel Alves (PT) tem na ponta da língua a explicação para a exclusão da cidade do rateio das verbas federais nos anos recentes: os políticos locais são oposição ao senador Ciro Nogueira (PP), atual ministro da Casa Civil.

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“Para os prefeitos que são ligados a ele, ele libera os recursos. Ele é o dono da caneta. Para cá é nada. No caso, o senador Marcelo (Castro, do MDB, relator do Orçamento de 2023) é quem ainda contribui com alguma coisa. E a nossa bancada federal”, diz o vice-prefeito.

Crédito eleitoral

Para os políticos, faz sentido beneficiar prefeituras controladas por aliados: desta forma, é mais provável que os recursos se transformem em votos, avalia o cientista político Fernando Meireles.

“Depois de eleito, o deputado procura em sua base onde tem um prefeito que possa mobilizar votos para ele. Você não tem como estar no município o tempo inteiro, mas tem alguém lá que pode fazer propaganda e dizer: ‘Foi o deputado tal que trouxe o dinheiro para a gente construir essa escola’”, diz Meireles. Na Ciência Política, a prática é chamada de “credit claiming” – algo como “obter os créditos”.

“O que mais acontece é isso: os pequenos municípios, quando estão com alguma verba travada ou não conseguem dinheiro, ligam para os deputados, e esses deputados vão aos ministérios tentar resolver os problemas”, afirma Meirelles. Em 2020, a tese de doutorado do cientista político sobre a distribuição de recursos federais venceu o Grande Prêmio de Teses da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A Constituição e a leis orçamentárias, porém, exigem que a distribuição siga critérios socioeconômicos e não eleitorais. Sem um mecanismo para garantir que o dinheiro vá para quem realmente precisa, o Brasil se transforma a cada eleição num país dividido entre ganhadores e perdedores.

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