BRASÍLIA e CARAPICUÍBA – Localizada na Região Metropolitana de São Paulo, Carapicuíba foi a cidade brasileira que mais recebeu emendas Pix nos últimos três anos e se transformou em um reduto de recursos indicados por parlamentares sem transparência. Com o dinheiro em caixa, a prefeitura pagou mais caro por asfalto, reforma de praça e até carrossel de brinquedo, enquanto deixou escolas com obras paralisadas ou atrasadas. O município recebeu mais verba que todo o Estado de Minas Gerais, o segundo mais populoso do País.
De 2020 a 2023, Carapicuíba foi beneficiada com R$ 133 milhões em indicações. A cifra foi direcionada para a cidade por deputados federais e estaduais por meio do mecanismo orçamentário. Desse valor, R$ 66 milhões já foram efetivamente transferidos para os cofres da administração municipal, superando qualquer outra cidade do Brasil. Os recursos foram enviados a pedido do prefeito Marcos Neves (PSDB).
A lista de padrinhos vai de Marco Feliciano (PL-SP), passando por Alexandre Frota (PSDB-SP), José Serra (PSDB-SP) e chega a Tabata Amaral (PSB-SP). O dinheiro cai direto na conta da prefeitura sem planejamento nem transparência, diferentemente de outros repasses. A emenda Pix foi turbinada após o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar o orçamento secreto inconstitucional.
Conhecido como “Pix orçamentário” ou “cheque em branco”, o mecanismo foi revelado pelo Estadão e ganhou os apelidos pois o dinheiro cai direto na conta das prefeituras, e não é passível de fiscalização por órgãos de controle.
Por meio da emenda Pix, os parlamentares destinam os recursos aos municípios, mas cabe à prefeitura fazer licitações, definir preços de produtos e serviços e selecionar as empresas fornecedoras.
Com o caixa reforçado, a prefeitura adotou a prática de cancelar licitações e lançar novas contratações com preços mais altos do que os orçados inicialmente para os mesmos produtos e serviços. O Estadão identificou que isso aconteceu em pelo menos oito contratações e incluiu até a compra de brinquedos para crianças da educação infantil. As contratações mais caras ocorreram a despeito de o município ter obras em escolas abandonadas.
Em outubro de 2021, a administração municipal lançou uma licitação para a compra de brinquedos para a educação infantil, incluindo “gira gira carrossel”, gangorra e casinha, estimada em R$ 1,5 milhão. Um mês depois, revogou o processo alegando ser necessário rever os detalhes dos produtos, “evitando causar prejuízo ao erário do município”. A licitação foi reformulada em abril de 2022, e novos itens incluídos como um “playground em formato de castelo”. O preço final estimado na concorrência pulou para R$ 6,4 milhões. Após a seleção das empresas, os valores efetivamente contratados somaram R$ 5,4 milhões.
A mudança de edital aumentou não só o valor final, mas também turbinou o preço de itens que já estavam previstos na primeira versão. O preço de um “gira gira carrossel” passou de R$ 7.836,67 para R$ 14.100,50. A quantidade a ser comprada também aumentou, de 30 para 60 unidades. A prefeitura selecionou a R.F. Gory Comercial, empresa registrada na capital paulista, para fornecer o material por R$ 8.100,00 cada unidade, preço menor que o estimado no segundo edital, mas ainda mais caro que o orçado inicialmente. O mesmo produto e da mesma marca é encontrado na internet por R$ 5 mil.
Em maio deste ano, R.F. Gory foi condenada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por fraude e sobrepreço em uma licitação de fraldas descartáveis em Santo André (SP) e está impedida de fazer novos negócios com o poder público. O TCU apontou que uma das sócias apresenta indicativos de ser “laranja”, sem qualificação para gestão do negócio. Procurada, a R.F. Gory não quis se pronunciar. A prefeitura de Carapicuíba alega que variações de preço podem ocorrer por mudanças nas especificações dos editais. O município não informou que usou recursos de emenda Pix para adquirir os produtos da licitação do carrossel.
Uma contratação para asfaltar ruas da Vila Municipal e revitalizar a Praça das Orquídeas, em uma região periférica da cidade, também foi alvo de aumento. Em junho de 2022, a prefeitura contratou uma empresa por R$ 1,6 milhão para fazer as obras. O contrato, porém, foi rescindido e assinado novamente com outra empresa em maio deste ano, por R$ 2,1 milhões. São as mesmas ruas e a mesma praça, com a mesma descrição dos serviços contratados.
Ao relançar a licitação, a prefeitura apresentou custos mais altos para asfalto e outros insumos usados na obra. O município admitiu que recursos de emenda Pix bancaram esse e outros asfaltamentos na cidade.
Também em 2022, a prefeitura selecionou uma empresa para ampliação do Ginásio Ayrton Senna, por R$ 2,9 milhões. O processo passou por rescisão e no ano seguinte foi recalculado para R$ 3,7 milhões. O município assinou o contrato com a empresa que ganhou a licitação por R$ 3,5 milhões e os recursos são provenientes de emenda Pix, como confirmou a prefeitura.
Desde que o dinheiro da emenda especial começou a pingar no município em 2020, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) de São Paulo identificou indícios de direcionamento e sobrepreço em 15 licitações de Carapicuíba, com exigências e prazos irregulares, forçando a administração do prefeito Marcos Neves a rever as contratações. O município admitiu que em apenas um deles os recursos eram oriundos de emenda Pix.
O caso envolve a compra de 40 mil kits de uniforme escolar para crianças da pré-escola até o quinto ano do ensino fundamental, por R$ 13 milhões. A rede municipal, porém, tem 15 mil alunos nessa faixa. Após ação do Tribunal de Contas, a licitação foi refeita com a compra de 20 mil kits, por R$ 5,6 milhões.
Prefeitura não investiu todo o dinheiro e não apresentou prestação de contas
A emenda Pix - chamada tecnicamente de transferência especial- turbinou a arrecadação de Carapicuíba nos últimos anos. O recurso reservado pela prefeitura para investimentos aumentou de R$ 82 milhões em 2019 para R$ 170 milhões em 2022, ano eleitoral, incluindo várias fontes de arrecadação.
O volume de investimentos efetivamente concluídos e pagos, no entanto, não aumentou no mesmo ritmo. No ano passado, metade dos recursos não foram gastos, o que significa que as obras não foram totalmente concluídas e que podem ficar para o período mais próximo da eleição municipal, no ano que vem.
Como o dinheiro da emenda Pix não tem uma finalidade definida, entra no caixa e se mistura a outros recursos. Por isso, o rastreamento é difícil e muitas vezes dribla os órgãos de controle. Nos documentos públicos, a prefeitura de Carapicuíba não identificou as emendas como fonte dos gastos, como o governo federal orienta. Além disso, o município não apresentou a prestação de contas dos recursos recebidos das emendas, disponível em uma plataforma específica da União.
Questionada pelo Estadão, a prefeitura afirmou que recebeu R$ 62,4 milhões de transferências especiais até o momento – valor referente apenas às emendas federais –, dos quais R$ 51,7 milhões foram comprometidos e R$ 19,6 milhões pagos efetivamente.
Especialistas apontam que, quando o recurso não é executado na totalidade, a população fica sem benefícios e o poder de aquisição da verba diminui ao longo do tempo. Por outro lado, se as licitações são refeitas e ficam para depois, o custo aumenta.
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A gestão municipal listou uma série de compras que foram abastecidas com o dinheiro, incluindo obras inacabadas e contratações que ficaram mais caras. “É importante ressaltar que algumas licitações são relançadas quando não há empresas vencedoras ou quando alguma empresa paralisa a obra. A Prefeitura de Carapicuíba esclarece que a variação de preço acontece ao longo do tempo, de acordo com o objeto das atas ou ampliação do escopo do projeto”, justificou a prefeitura.
A administração alegou que não fez a prestação de contas porque ainda não usou a totalidade dos recursos e “não há opção de realizar a prestação de contas parcial”, o que não é verdade. A plataforma Transferegov, antiga Plataforma Mais Brasil, permite ao município apresentar informações e anexar documentos comprovando a destinação do dinheiro mesmo que parcialmente, de acordo com o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, responsável pelo sistema.
Deputados não dizem o que foi feito com o dinheiro
Nenhum critério técnico explica o fato de Carapicuíba ser a campeã de emendas Pix no Congresso e na Assembleia Legislativa de São Paulo, que adotou o mesmo modelo a nível estadual. Enquanto isso, municípios vizinhos receberam quantias mínimas e cidades pelo País afora ficaram sem nada.
Congressistas e prefeitos defendem o novo modelo de emendas pela agilidade. Especialistas e órgãos de controle, porém, veem risco de desvios e corrupção. A tática do prefeito é pedir recursos usando diferentes obras na cidade. Os parlamentares que mais enviaram recursos, no entanto, não dizem onde o dinheiro foi aplicado.
“Ele (o prefeito) não sai de Brasília, vai de gabinete em gabinete, por isso essa cidade está indo de vento em popa na administração dele”, afirmou o deputado Marco Feliciano (PL-SP), em um vídeo gravado ao lado do prefeito Marcos Neves em 2020. Mesmo sem ser da região, Feliciano foi o campeão de indicações de emenda Pix para Carapicuíba, com R$ 23 milhões. O parlamentar não respondeu à reportagem sobre as emendas indicadas.
O prefeito é filiado ao PSDB e tem histórico político na cidade. Ele é filho do ex-prefeito de Carapicuíba Luiz Carlos Neves, já foi vereador e deputado estadual. O pai de Marcos Neves foi o quinto prefeito da cidade e o primeiro deputado estadual que saiu do município, tendo feito parcerias em eleições estaduais com o prefeito de Barueri, Rubens Furlan (PSB), que está no seu sexto mandato na cidade vizinha de Carapicuíba. As duas famílias também são próximas. A deputada Bruna Furlan, filha de Rubens Furlan, apadrinhou R$ 3,5 milhões de emendas Pix para Carapicuíba.
O deputado Vinicius Carvalho (Republicanos-SP) apadrinhou R$ 17,9 milhões para Carapicuíba, o segundo maior valor repassado via emenda Pix. O parlamentar disse à reportagem que escolheu essa e outras cidades porque são administradas por “prefeitos parceiros do mandato”, mas admitiu que envia o dinheiro sem uma destinação específica e não acompanha onde é gasto, função que, de acordo com ele, é do tribunal de contas. “Não indico destinação. Atendo pedidos feitos pelo Executivo da cidade, pois, creio que ele sabe onde melhor aplicar os investimentos, pois é o gestor.”
Em 2021, o então deputado Alexandre Frota (PSDB-SP) divulgou que enviou uma emenda de R$ 8 milhões para Carapicuíba, destinada à construção de um novo pronto atendimento na cidade. O recurso foi destinado por meio da emenda Pix. A obra, no entanto, só começou em 2023 e ainda está em fase inicial.
O ex-deputado Abou Anni (União-SP) indicou R$ 6 milhões para o município e disse ao Estadão que o recurso foi direcionado para obras em um terminal da cidade. “Eu tenho um vínculo de amizade com o Marcos Neves e ele me ajudou bastante politicamente lá”, disse Anni. Ele não soube responder, no entanto, quanto do dinheiro da emenda foi usado para a obra. “Não sei, eu não acompanhei”.
Procurada pelo Estadão, a deputada Tabata Amaral afirmou que decide a destinação das emendas de seu mandato “utilizando avaliações técnicas e participação popular”.
“Meu mandato adota uma série de procedimentos para garantir mais transparência e qualidade para a destinação dos recursos. Depois de feita essa seleção, nós fazemos a indicação para o governo federal. Após isso, o governo adota um processo longo para aprovação e pagamento da emenda. Atualmente, o recurso desse projeto ainda não foi pago. Quando for feito o pagamento, meu mandato fará o acompanhamento e fiscalização do projeto, assim como fazemos com todas as emendas”, afirmou a deputada.
Procurado, José Serra não se manifestou.
Correções
Diferentemente do publicado no gráfico da primeira versão desta reportagem, o município beneficiado com R$ 50 milhões em emendas Pix é Iracema, em Roraima, e não Iracema, no Ceará, como constou.
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