Diante dos riscos iminentes de novas derrotas do governo Lula no Congresso, o Legislativo tem sido apontado como o culpado de atrapalhar a governabilidade de um governo legitimamente eleito.
A legitimidade de uma decisão é geralmente atestada quando decorre da preferência de uma maioria absoluta. Se a maioria deseja uma determinada política, esta estaria democraticamente justificada. Essa crença sobrevive mesmo em sistemas políticos que não são majoritários puros, também chamados de híbridos por combinarem elementos de consenso.
O Brasil possui um sistema político híbrido. Enquanto a regra eleitoral que elege o presidente é majoritária (o candidato que tem maioria de votos é o vencedor) em dois turnos, a regra que elege deputados é consensualista, pois as vagas para o Legislativo são alocadas proporcionalmente ao número de votos obtidos por cada partido ou federação partidária.
Em sistemas híbridos, é muito comum o eleitor escolher um perfil de representação para o Congresso que se contrapõe ao perfil do presidente eleito. A despeito dessa diferença, muitos acreditam que o presidente, por ter sido eleito pela maioria dos votos válidos, teria o direito de governar muitas vezes ignorando a preferência agregada do Legislativo.
Mas por que o eleitor normalmente não vota de forma congruente para o Executivo e para o Legislativo em sistemas híbridos, fazendo com que as preferências entre esses Poderes não sejam necessariamente alinhadas?
Em ambiente majoritário, onde geralmente existem dois partidos, a teoria do eleitor mediano (Downs 1957) prevê que esses partidos tenderiam para o centro do espectro ideológico, produzindo preferências políticas centristas. Ou seja, haveria incentivos endógenos de sobrevivência no sistema eleitoral majoritário para empurrar os partidos para a posição do eleitor mediano. O partido que se move para a mediana quase sempre derrota o outro partido que não conseguiu convergir para ela.
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Revisitando o paradigma downsiano, Sartori (1976) argumenta que embora o teorema do eleitor mediano possa explicar o funcionamento de sistemas bipartidários, não é confiável em sistemas multipartidários. O que Sartori percebeu é que a teoria de Downs pressupõe uma força centrípeta que impulsionaria a competição eleitoral entre os dois principais partidos, a qual estaria ausente em sistemas multipartidários. Isso aconteceria porque, no multipartidarismo, os partidos não concorrem para o Legislativo dentro de um espectro ideológico contínuo (esquerda-direita), mas concentram sua atuação em subgrupos de eleitores específicos.
Por isso que eleições para o Legislativo podem não ser baseadas em programas partidários ou ideológicos bem definidos, já que os candidatos são capazes de selecionar subgrupos de eleitores com base em outros tipos de conexão. No Brasil, essas conexões tendem a ser mais pragmáticas e geograficamente localizadas com base na trajetória política que candidatos ao Legislativo desenvolvem ao longo de seus mandatos. Nessas conexões locais, o que importa é a performance individual do legislador e não a sua filiação partidária, a sua preferência ideológica ou mesmo programática.
Portanto, no presidencialismo multipartidário, enquanto o presidente compete pelo eleitor mediano, os partidos e candidatos na esfera legislativa competem por nichos de eleitores.
É aí que se estabelece a desconexão entre o Executivo e o Legislativo no presidencialismo multipartidário: vota-se para presidente com clivagens ideológicas mais claras em função da regra majoritária em dois turnos. Mas as chances de sobrevivência eleitoral de candidatos para o Legislativo no sistema proporcional não necessariamente dependem de conexões ideológicas/programáticas com eleitores.
É como se, em um sistema híbrido, o Congresso e o presidente fossem fotografados pelo eleitor sob ângulos distintos. Enquanto em um sistema majoritário puro, ter-se-ia uma única foto.
Se de um lado o presidente eleito tem legitimidade para implementar uma determinada política, de outro os legisladores também têm legitimidade para implementar políticas que privilegiem os nichos específicos que os elegeram, ainda que não de forma majoritária.
Para que esse conflito seja superado e se alcance cooperação funcional no presidencialismo multipartidário, o presidente necessita montar coalizões que levem em consideração a preferência agregada do Legislativo que, na grande maioria das vezes, não coincide com a sua preferência. Os partidos que aceitam participar da coalizão governativa precisam ser recompensados pelo presidente para que se interessem em cooperar com o Executivo.
É justamente aqui que reside a origem dos problemas do governo Lula com o Legislativo. Achar que pode governar ignorando a preferência agregada do Legislativo e sem recompensar seus parceiros de coalizão, igualmente legitimamente eleitos, levando em consideração o peso político de cada um no Legislativo e, por que não dizer, na representação obtida por eles na própria sociedade.
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