Em 2025, o Brasil celebra 40 anos de democracia, o período democrático mais longevo da sua história. A eleição do primeiro governo civil pós-ditadura militar, liderado por Tancredo Neves e José Sarney, em 15 de janeiro de 1985, embora indiretamente pelo Colégio Eleitoral e não diretamente pelos eleitores, colocou fim a 21 anos de autoritarismo e deu início à Nova República.
No clássico artigo “Transitions through transaction: democratization in Brazil and Spain”, os autores Donald Share e Scott Mainwaring argumentam que existem três tipos ideais de transição de regimes autoritários para a democráticos, dependendo do grau de controle exercido pelas elites autoritárias do próprio processo de transição.
O primeiro e mais comum seria a transição por colapso do regime autoritário. Elites autocráticas perderiam completamente a legitimidade como consequência, por exemplo, de uma derrota militar acachapante seguida de grave crise econômica levando assim a derrocada do regime, como a ocorrida na Argentina após a guerra das Malvinas em 1982, na Grécia após o fracasso militar no Chipre ou em Portugal na revolução dos Cravos. Os autores lembram que esse tipo de transição envolve significativas mudanças institucionais e uma ruptura radical com os padrões autoritários anteriores.
O segundo tipo de transição para a democracia seria por “afastamento voluntário” das elites autoritárias. Embora ainda consigam reter algum controle sobre a transição e evitar sua completa derrocada, tais elites se afastariam do poder em razão de seu baixo nível de legitimidade popular e de coesão interna. Em função da clara erosão do regime autoritário, os termos de negociação com a oposição são menos favoráveis ao regime. O Peru e a Bolívia em 1980, e o Uruguai em 1982-85, seriam bons exemplos.
O terceiro tipo e menos comum seria a “transição por transação”, em que as elites autoritárias reformistas se tornariam mais fortes dentro do regime, dariam início ao processo de liberalização e controlariam a maioria dos aspectos da transição. Como forma de se resguardar contra potenciais retaliações futuras, o ritmo das reformas implementadas seria gradual, lento e seguro, alimentando a percepção de que a ordem e a estabilidade estariam intactas, fruto de um pacto pela democracia. Brasil, Espanha e África do Sul são bons exemplos.
A Nova República foi fruto de uma engenharia política altamente complexa. Teve início em 1974, no governo Ernesto Geisel, e só terminou em 1985, no final do governo João Figueiredo. Exigiu a construção de uma aliança com garantias entre “reformadores” (do lado do regime autoritário), que preferiam a liberalização do regime na direção segura e sem retaliações para a democracia, e de “moderados” (do lado oposicionista), que desejavam a democratização, mesmo que envolvesse o compartilhamento de poder com setores reformistas que faziam parte do regime autoritário.
Essa tarefa não foi nada fácil, pois exigiu a construção de confiança mútua com inúmeras idas e vindas em um contexto político inóspito, de grande suspeição e de ressentimentos recíprocos entre os atores políticos. A transição por transação não interessava aos militares “linha-dura”, que desejavam manter o regime autoritário sem grandes concessões ou mudanças. Também não interessava aos “radicais” de esquerda, que condenavam qualquer barganha com setores reformadores e buscavam a instalação de uma democracia incondicional, até mesmo por caminhos revolucionários.
A longevidade da democracia brasileira não foi alcançada por acaso nem era inexorável. Foi resultado de um processo histórico de aprendizado não linear, por vezes desordenado de adaptações e de ajustes das instituições políticas.
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Os períodos passados de democracia (1946-1964) e o próprio governo autoritário (1964-1985) foram cruciais para a escolha específica do regime presidencialista multipartidário, que inesperadamente gerou uma democracia sustentável. A chave para se compreender o “segredo” da estabilidade democrática atual reside na interação de uma presidência forte e de mecanismos robustos de pesos e contrapesos.
O fator crítico para a consolidação da democracia no país foi o surgimento de uma solução institucional nova e criativa para lidar com os desafios do presidencialismo multipartidário. O “milagre” institucional foi o fortalecimento constitucional tanto do presidente, que se transformou em construtor e gerente de coalizões, como também de uma complexa rede de controles horizontais que foram igualmente fortalecidas, criando assim um ciclo virtuoso de governos limitados, mas com capacidade de formar maiorias e de governar.
Quando esses governos institucionalmente limitados, mas governáveis, emergiram, as crises debilitantes que no passado fragilizavam frequentemente às instituições democráticas se dissiparam, aumentando, assim, os níveis de estabilidade política e, em última instância, protegendo a democracia no país.
Mesmo quando populistas extremos e de perfil autocrata são eventualmente eleitos, o conjunto de organizações de controle tem capacidade de lidar com eles, abreviando seus mandatos por meio de impeachments e/ou expelindo-os do jogo político e do processo eleitoral.
O fato de o Brasil desfrutar de uma democracia consolidada não significa necessariamente que os últimos quarenta anos tenham sido de uma trajetória fácil. O Brasil enfrentou muitos obstáculos ao longo do caminho. O país nem sempre conseguiu oferecer respostas virtuosas para a solução de problemas. A percepção dominante é de um mal-estar intermitente.
Mas o fato de o Brasil ter sido capaz de enfrentar todos esses desafios seguindo procedimentos democráticos e sob o Estado de Direito é algo que merece ser celebrado. Viva a democracia brasileira!
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