Cartéis de drogas de Miami, Medellín e Sinaloa mantêm um Estado paralelo no Alto Solimões, na Amazônia. É um Brasil onde até o poder público precisa seguir regras impostas pelo crime. O Estadão teve acesso a informações sigilosas que fazem parte de investigações sobre o contexto do desaparecimento do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips e que revelam a existência de uma cadeia criminosa em plena atividade pelos rios, florestas e cidades da tríplice fronteira com a Colômbia e o Peru.
As comunidades ribeirinhas nas margens do Rio Itaquaí, que deságua no Javari, afluente do Solimões, sofrem forte influência do tráfico, como as de São Rafael, de São Gabriel e de Ladário. Foi da comunidade de São Rafael que Pereira e Phillips partiram no último dia 5 em direção a Atalaia até não serem mais vistos.
Trata-se de megaesquema de transporte de armas e drogas, pistolagem e lavagem de dinheiro que tem impacto na economia de nove municípios com o mercado de entorpecentes e de pesca e caça ilegais em uma região de 213 mil km² de floresta, maior que o território do Estado do Paraná.
Do outro lado do rio Javari, em território peruano, as plantações de coca podem ser encontradas em meia hora de viagem. Nas cidades dessa área de fronteira, a emissão de notas fiscais é raridade. Sem controle do Fisco, o dinheiro dos cartéis se mistura ao de negócios constituídos para dar aparência de legalidade aos esquemas que aliciam comerciantes, atravessadores, pescadores, caçadores e políticos locais.
A reportagem reconstituiu a rede do crime a partir de documentos e conversas com agentes ligados às investigações, autoridades da segurança pública do Amazonas, advogados que atuam na fronteira, ribeirinhos, indígenas e pessoas com acessos a traficantes de drogas. Dos três cartéis internacionais, o de Medellín predomina no Alto Solimões, região que compreende os municípios de Tabatinga, Benjamin Constant e Atalaia do Norte. Eles atuam em sociedade com facções brasileiras.
Ordem
A polícia trabalha com a suspeita de que um atravessador com dupla nacionalidade tenha dado uma ordem para que o pescador Amarildo Costa, o Pelado, preso temporariamente, matasse Pereira por causa de prejuízos ao negócio ilegal da pesca que o indigenista vinha causando com fiscalizações. Como mostrou o Estadão, Pereira treinou uma equipe de vigilância indígena capaz de documentar a ação de infratores em territórios preservados, e a medida prejudicava o fluxo criminoso.
O atravessador, conhecido como Colômbia, tem propriedades em Benjamin Constant, segundo as investigações. No entanto, atua nas sombras. Apesar de estar no radar de policiais há anos, investigadores de campo relataram à reportagem que só viram a primeira fotografia dele há três dias.
Um policial federal ouvido sob anonimato disse que traficantes que dominam as calhas dos rios Ituí, Itaquaí e Javari são só a base de uma rede maior. Eles atuam como “capatazes” para intermediários que, em cidades como Tabatinga, assumem negócios legais, como restaurantes, cafés e hotéis, para lavar dinheiro. Esses intermediários prestam contas a líderes dos cartéis internacionais.
Ribeirinhos e pescadores como Pelado e outros sob investigação têm papel fundamental para os traficantes. Eles agem como líderes nas comunidades e conseguem dar vazão a produtos extraídos da floresta. Com isso, traficantes conseguem reforçar a aparência de legalidade de seus negócios e passam a ter a condescendência de ribeirinhos para operar rotas de drogas para outros Estados e para a Europa.
Apesar de toda a movimentação militar em Atalaia, amigos de Pelado continuam entrando e saindo de terras indígenas com embarcações que levam freezers para pescados. Um deles, conhecido como Caboclo, foi flagrado pela reportagem próximo a um dos “furos” (atalhos) do Itaquaí. Ele é monitorado pela polícia e já prestou depoimentos. Até agora, é tratado como testemunha.
Na fronteira, o mercado de pesca ilegal, sobretudo a do ameaçado pirarucu, de tracajás e tartarugas, não foi suspenso mesmo com os olhos do mundo voltados para a Amazônia. Numa apreensão no dia 23 de março, Pereira causou um prejuízo avaliado em mais de R$ 120 mil a exploradores, segundo relatos de fontes que atuam nas investigações.
As informações levantadas pelos indígenas e demais integrantes da equipe de Pereira possibilitaram a apreensão no porto de Atalaia de mais de uma tonelada de pirarucu e de carne de anta. O barco de valor estimado em R$ 70 mil também foi confiscado. Uma tartaruga adulta é vendida por cerca de R$ 1 mil no mercado paralelo.
Dinâmica
Responsável pela criação da Divisão de Repressão aos Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da PF, nos anos 2000, o delegado Jorge Pontes afirmou que o interesse de narcotraficantes em explorar criminosos ambientais se dá pela diferença nas punições aos dois crimes. A extração ilegal de recursos naturais tem pena considerada branda, na comparação com a de tráfico internacional de drogas. “Os traficantes perceberam que essas atividades são extremamente lucrativas e a reprimenda para esses crimes ambientais é muito baixa”, disse Pontes. “E os crimes ambientais têm suporte de políticos, porque essas atividades financiam campanhas.”
O delegado liderou diversas apreensões na Amazônia. “Percebia que os barcos levavam de tudo, de tartarugas e armas a grupos de garimpeiros. É uma área sem lei. Tem havido um recrudescimento por falta de fiscalização”, afirmou.
Em Atalaia do Norte, dois procuradores da prefeitura, escalados pelo chefe do Executivo local, chegaram a assumir a defesa do pescador que teve a prisão temporária decretada. Eles foram escolhidos pelo prefeito Denis Paiva (PSC), que justificou a “coincidência” dizendo que faltam advogados no município.
Paiva foi vereador em 2008 e está no primeiro mandato como prefeito. Declarou R$ 91 mil na campanha de 2020. Do total, o valor de R$ 1 mil foi em doação privada. O restante veio do partido. “É um município onde todo mundo se reporta ao prefeito. Eu não conheço as pessoas como criminoso, conheço como pescador”, disse Paiva.
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