RIO – Na semana em que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi alvo de uma operação da Polícia Federal que apura fraudes em certificados de vacinação contra a covid-19 no sistema do Ministério da Saúde, investigações sobre os casos de rachadinha nos gabinetes de seus filhos Carlos e Flávio ampliam o cerco ao clã. Órgãos de fiscalização e controle avançam nas apurações sobre o possível envolvimento do ex-mandatário e sua família na participação de supostos crimes de fraude, organização criminosa e peculato – a defesa e aliados negam o envolvimento dos Bolsonaros nas linhas de investigação.
Um laudo do Laboratório de Tecnologia de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro do Ministério Público do Rio (MP-RJ), divulgado pelo O Globo e confirmado pelo Estadão, revelou que o chefe de gabinete de Carlos, Jorge Luiz Fernandes, recebeu R$ 2,014 milhões em depósitos de três ex-servidores e três funcionários que ainda trabalham para ele na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Os dados obtidos pelo MP reforçam as suspeitas da prática de peculato, conhecida como rachadinha, no gabinete de Carlos. Já as investigações sobre o mesmo crime no gabinete do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), enquanto ele ocupava o cargo de deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), podem voltar a andar após o MP do Rio entrar com um recurso no Órgão Especial do TJ para esclarecer pontos da decisão que rejeitou a primeira denúncia contra o filho mais velho do ex-presidente. Os promotores buscam sanar eventuais questionamentos para recomeçar as investigações.
O que se sabe sobre o caso de rachadinha no gabinete de Carlos?
O Ministério Público do Rio apontou indícios de que o vereador era o “beneficiário final” de uma organização criminosa suspeita de desviar salários de assessores em seu gabinete na Câmara Municipal do Rio. Nessa estrutura, Ana Cristina Siqueira Valle, ex-chefe de gabinete de Carlos e segunda ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro, ocupava, segundo as apurações da Promotoria, lugar de destaque. Ela possuia sete parentes em cargos de confiança e acumulou patrimônio relevante.
O MP acredita que a suposta organização criminosa dedicada à rachadinha era integrada por seis famílias. Além de Carlos, outras 26 pessoas tiveram os sigilos bancário e fiscal quebrados por ordem da Justiça, em maio de 2021. Segundo os promotores, o filho do presidente teria usado o esquema para cometer o crime de peculato (desvio de dinheiro público por servidor), “cuja pena máxima supera quatro anos”. O primeiro e mais detalhado dos núcleos envolve Ana e seus sete parentes que passaram pelo gabinete de Carlos.
Segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) assinalou em relatório citado pelo MP no pedido de quebra de sigilo acolhido pela Justiça em maio, Ana, em março de 2011, depositou em sua própria conta R$ 191,1 mil. Quatro meses depois, foram mais R$ 341,1 mil. Houve ainda saques que somaram R$ 1,1 milhão por meio de uma empresa. Também chamou a atenção do MP a atuação de Ana no mercado imobiliário. Em alguns negócios, houve uso de dinheiro vivo e valores supostamente subfaturados.
Quais os novos indícios?
O MP aponta que, entre 2009 e 2018, o chefe de gabinete de Carlos Bolsonaro recebeu R$ 647 mil de Juciara da Conceição Raimundo, R$ 101 mil de Andrea Cristina da Cruz Martins, R$ 814 mil de Regina Célia Sobral Fernandes, R$ 212 mil de Alexander Florindo Batista Júnior, R$ 52 mil de Thiago Medeiros da Silva e R$ 185 mil de Norma Rosa Fernandes Freitas. Jorge Fernandes é casado com Regina Célia Sobral.
O laudo aponta que Jorge Luiz Fernandes recebeu R$ 2,014 milhões em depósitos de três ex-servidores do filho “02″ do ex-presidente Jair Bolsonaro e três funcionários que ainda trabalham para ele na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Em nota, o advogado Antônio Carlos Fonseca, que integra a defesa do vereador, diz “que é preciso apurar se ocorreu, mais uma vez, o lamentável vazamento de possíveis documentos e informações que estão sob sigilo determinado pelo Poder Judiciário”.
A defesa afirma ainda que Carlos está “totalmente à disposição para prestar esclarecimentos e fornecer qualquer tipo de informação ao Ministério Público.”
O Estadão não localizou as defesas dos demais citados no laudo do MP.
As investigações sobre o caso de rachadinha no gabinete de Flávio
Flávio Bolsonaro, filho “01″, é investigado por um suposto esquema de rachadinha em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Segundo o Ministério Público, o dinheiro seria gerenciado pelo ex-policial militar Fabrício Queiroz sob a liderança de Flávio. Queiroz foi assessor de Flávio na Alerj e é amigo de longa data do presidente Jair Bolsonaro. Em 2018, como revelou o Estadão, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontou movimentações atípicas nas contas bancárias de Queiroz, por onde circulou R$ 1,2 milhão no período de um ano.
O órgão considerou o valor incompatível à função exercida por Queiroz no período. A suspeita do Ministério Público é de que o dinheiro é fruto de um esquema de devolução de parte dos salários (conhecido como rachadinha) de funcionários do gabinete de Flávio na Alerj. As investigações também apontam a contratação de funcionários “laranjas” e lavagem do dinheiro por meio da compra de imóveis e na loja de chocolates do senador.
Flávio Bolsonaro nega as acusações desde que foram reveladas as movimentações atípicas nas contas dele e de seu ex-assessor Fabrício Queiroz. A defesa afirmou à época da rejeição da primeira denúncia apresentada pelo Ministério Público que o “caso está enterrado”. O processo teve provas anuladas no decorrer do processo por decisões de tribunais superiores.
“O STJ já havia anulado todas as provas. A defesa entende que o caso está enterrado, e caso haja qualquer desdobramento serão tomadas as medidas judiciais cabíveis”, afirmou a advogada Luciana Pires, que representa o senador Flávio Bolsonaro.
O caso será retomado?
A defesa de Flávio apresentou ao menos nove recursos para suspender as investigações. O imbróglio jurídico levou à anulação da primeira denúncia apresentada contra o senador. Com a decisão, o MP diz que poderá recomeçar as investigações sobre o caso, com a coleta de novas provas, com base no primeiro relatório do Coaf.
O documento apontou movimentação atípica de R$ 1,2 milhão em uma conta no nome de um ex-assessor de Flávio, Fabrício Queiroz, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. O documento levou o MP do Rio a abrir a investigação e foi revelado pelo Estadão. A decisão do tribunal de rejeitar a acusação foi tomada após o próprio MP fluminense solicitar a anulação da denúncia.
A Promotoria decidiu pedir a nulidade da peça acusatória que apresentará à Justiça após decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de anular provas colhidas durante as investigações. O procurador-geral de Justiça do Rio, Luciano Mattos, comunicou ao TJ, em maio, que, com a anulação de quase todas as provas obtidas na investigação pelo STJ e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a denúncia ficou insustentável. Segundo Mattos, que assinou a petição ao Órgão Especial do TJ-RJ pedindo a anulação da denúncia, não há eventual prejuízo ao “reinício das investigações”.
Na petição ao TJ-RJ, o procurador-geral de Justiça afirmou que “não há óbice legal à renovação das investigações, inclusive no que diz respeito à geração de novos RIFs, de novo requerimento de afastamento do sigilo fiscal e bancário dos alvos”. A decisão de pedir a nulidade do processo foi tomada após o STJ aceitar, por quatro votos a um, pedido feito pela defesa de Flávio para anular as decisões tomadas pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro.
Entre as provas utilizadas para embasar a denúncia do MP-RJ estão a quebra de sigilo fiscal e bancário do filho de Bolsonaro, buscas e apreensões e as prisões de Fabrício Queiroz, apontado como operador financeiro do esquema, e da mulher, Márcia de Oliveira Aguiar. A decisão do STJ esvaziou a denúncia, oferecida em outubro de 2020 ao Órgão Especial do TJ do Rio.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.