‘Centrão’ garante a hegemonia nas cidades campeãs de emendas parlamentares

Candidatos a prefeito apoiados pelos congressistas que mais mandaram emendas para suas cidades venceram em 25 de 28 das cidades analisadas pelo Estadão. Municípios estão entre os que mais receberam emendas por habitante

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Foto do author André Shalders

BRASÍLIA - Nas cidades mais beneficiadas com emendas parlamentares nos últimos anos, o “Centrão” é o grande vencedor das eleições municipais deste ano. O Estadão analisou a corrida eleitoral pelas 50 prefeituras que mais receberam emendas de todos os tipos, por habitante, desde 2021 até agora, em todo o País. Em 28 dessas cidades, foi possível identificar qual é o candidato apoiado pelo congressista que mais mandou emendas para a prefeitura. E, em 25 delas, o prefeito será aquele que tem o apoio do “padrinho” no Congresso Nacional.

O plenário da Câmara em Brasília: emendas garantiram vitórias nas cidades que mais receberam Foto: Wilton Júnior/Estadão

Em só três cidades, a prefeitura não acabou nas mãos do candidato apoiado pelo deputado ou senador que mais mandou emendas. São elas Cutias (AP), Ipiranga de Goiás (GO) e Mucajaí (RR). Em todas as outras, o apadrinhado pelo congressista prevaleceu. Das 28 cidades, 23 terão prefeitos de partidos do Centrão, como PSD, União Brasil, Republicanos e Avante. As demais estão com MDB, PL e PSDB. Nenhuma será governada pela esquerda.

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O grupo das 50 cidades mais beneficiadas por emendas na última gestão municipal (2021-2024) se espalha por 17 Estados brasileiros. 358.163 brasileiros, e suas prefeituras receberam pouco mais de R$ 2 bilhões nos últimos quatro anos – ou seja, é como se cada morador dessas localidades tivesse sido contemplado com R$ 5,8 mil em investimentos públicos por meio de emendas nesse período. Mesmo dentro desse grupo, no entanto, a disparidade é grande: em São Luiz (RR), a média ficou em R$ 14,4 mil para cada um dos 7.315 moradores – mais de R$ 10 mil a mais que em Júlio Borges (PI), última do ranking. A média do Brasil é de R$ 969,50.

O Piauí é um dos Estados mais representados no ranking das 50 cidades que mais receberam emendas, com oito municípios. Governado pelo PT desde 2015, o Estado é também casa do ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro e presidente nacional do Progressistas, Ciro Nogueira. Antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar a inconstitucionalidade do Orçamento Secreto, no fim de 2022, Nogueira garantiu o envio de milhões de reais das emendas de relator para cidades piauienses. Parte dos recursos continuou a ser paga em 2023 e até neste ano, por meio dos chamados “restos a pagar”, posicionando várias cidades piauienses no ranking das mais bem abastecidas pelo dinheiro das emendas.

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Em várias cidades piauienses, o grupo político de Ciro Nogueira enfrentou candidatos do PT, apoiados pelo governador Rafael Fonteles. Algumas delas estão no ranking das 50 mais beneficiadas por emendas. É o caso de Júlio Borges (PI), no Sul do Estado, perto da fronteira com a Bahia; e São Félix do Piauí, localizada a 157 km da capital, Teresina.

Em São Félix, a campeã de emendas enviadas é a ex-deputada Iracema Portella (PP), com R$ 2,9 milhões enviados – a cidade também recebeu R$ 8 milhões em emendas do relator no período, e mais R$ 3,7 milhões em emendas de bancada. Mesmo divorciada de Ciro Nogueira desde 2019, os dois continuam integrando o mesmo grupo político – inclusive participando de eventos de campanha juntos. Iracema também é presidente nacional do Mulheres Progressistas, a ala feminina do partido comandado pelo senador.

No fim de setembro, o candidato do PP local, Dr. Joseilson Pio, recebeu uma visita de Ciro Nogueira em São Félix. Ele disputou a prefeitura contra Reginaldo do Simão (PT), apoiado por Fonteles. “Hoje recebemos em São Félix do Piauí a visita do nosso senador Ciro Nogueira, do deputado Júlio Arcoverde e do nosso grande amigo Joel”, escreveu Joseilson em postagem no Instagram. Ele também menciona Iracema na fala. Em outra postagem, Joseilson diz que já conseguiu, “com o apoio do senador Ciro Nogueira e deputado Júlio Arcoverde, a aprovação e liberação do asfaltamento”.

Já Reginaldo do Simão teve um vídeo de apoio do governador do Estado. “Olá meu povo querido de São Félix do Piauí, tudo bem? Passando aqui nessa reta final da campanha para passar uma mensagem muito importante, reforçando o pedido do voto de confiança no nosso amigo, o grande gestor Reginaldo, com o número 13″. Antes das 20h de domingo, o resultado no município de 2,8 mil habitantes já era conhecido: Joseilson Pio se elegeu com 68,8% dos votos válidos, ante apenas 31,1% de Reginaldo.

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Em Júlio Borges (PI), o candidato de Ciro Nogueira, João Paulo (PP), conseguiu um vídeo do senador prometendo “ainda mais recursos” para a cidade. “Nós viemos até você para pedir para continuar esse trabalho. E a única forma de isso acontecer é que o João Paulo vença as eleições do dia 06 (...). Fica aqui o compromisso do senador Ciro Nogueira: de nós colocarmos ainda mais recursos para Júlio Borges, ao lado do João Paulo”, diz ele, no vídeo. No fim da apuração, João Paulo venceu a disputa com 67,7%. A candidata do PT, Luziene, ficou com 3,4%.

Segundo o cientista político Sérgio Praça, as eleições para o Congresso Nacional e para as prefeituras se retroalimentam: deputados ajudam os prefeitos com emendas, e os prefeitos depois ajudam os deputados a se reelegerem nas eleições gerais, dois anos depois. “Nessas cidades, você tem essa lógica. O deputado (ou senador) é mais forte que o prefeito, até porque ele atua em várias cidades. Nessas cidades, é um volume de recursos assombroso, que faz muita diferença para a cidade”, diz ele, que é professor do CPDOC-FGV.

“Um momento como o do governo Bolsonaro, no qual as emendas aumentaram vertiginosamente, significou que essas prefeituras tiveram um dinheiro que elas nunca tiveram antes. Esses prefeitos puderam executar políticas públicas com recurso dos parlamentares”, diz Gabriel Guimarães, que é doutorando em ciência política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).

Emendas valeram mais que apoio do governador

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Em algumas cidades, o apoio do congressista que mais mandou verbas acaba pesando até mais que o do próprio governador do Estado – mesmo quando o chefe do Executivo estadual é bem avaliado, como em Goiás. Em Davinópolis, cidade localizada a 300km de Goiânia, na fronteira com Minas Gerais, o deputado federal Glaustin da Fokus (Podemos) apoiou a candidata Vanusa do Bento (Podemos), ligada à gestão atual, contra a desafiante Lorena Damas (MDB). Vanusa sagrou-se vitoriosa com 49,6% dos votos, ante 40,8% da emedebista.

Glaustin da Fokus destinou R$ 9,8 milhões para a cidade nos últimos quatro anos. “Ajudei muito essa cidade. Abençoei muito essa cidade. (O que) mandei de dinheiro pra cá foi notícia nacional: um município de pequeno para médio, a gente mandar tanta emenda pra cá”, diz o deputado num vídeo postado por Vanusa no Instagram. “O deputado @glaustindafokus é um grande parceiro de Davinópolis e continuará trazendo benefícios para a cidade”, diz ela.

Junto com o Piauí, Roraima é o Estado com mais cidades no Top 50. São Luiz (RR) é a cidade com o maior valor per capita no País: nos últimos quatro anos, a cidade recebeu R$ 20,1 milhões, pouco mais de R$ 14 mil para cada um dos pouco mais de 7 mil habitantes. O prefeito atual, James Batista (SD), foi denunciado por corrupção e associação criminosa, sob a acusação de compra de votos em 2020. Batista apoiou o candidato do PP na cidade, Elias Beschorner da Silva, o Chicão – que também teve o apoio do senador Mecias de Jesus (Republicanos). Ele e o filho mandaram mais de R$ 8 milhões para a cidade. No fim, Chicão acabou eleito com quase 60% dos votos.

Há também casos nos quais política, verbas e família se misturam. Na pequena Bituruna (PR), o ex-deputado Valdir Rossoni (PSDB) mandou quase R$ 34 milhões para a prefeitura comandada por seu filho, Rodrigo Rossoni (PSDB) – foi quem mais mandou dinheiro para a cidade, de longe. Este ano, a cidade reelegeu Rodrigo Rossoni com nada menos que 75,5% dos votos, ante apenas 19,3% do desafiante do PT, Nelson Liber.