Dos 17.908 habitantes de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, 6.868 vivem em situação de extrema pobreza, conforme dados do CadÚnico, fornecidos pelo Ministério da Cidadania. A cidade ganhou o noticiário na semana passada, após a prefeitura cancelar um show do cantor Gusttavo Lima, que havia sido contratado por R$ 1,2 milhão com verba da Compensação Financeira pela Exploração Mineral – CFEM.
O Ministério Público do Estado abriu procedimento para investigar uso indevido de verba para a contratação da apresentação, marcada para o dia 20 de junho como parte da programação da 30ª Cavalgada do Senhor Bom Jesus do Matosinhos. Em nota, a prefeitura diz ter recebido a notícia “com perplexidade’'. Especialistas ouvidos pelo Estadão questionam o uso do recurso com esse fim.
A CFEM funciona como uma contrapartida a ser paga por pessoas físicas e jurídicas pelo uso de recursos minerais e é administrada pela Agência Nacional de Mineração (ANM).
No Brasil, o município que mais arrecada a CFEM é Parauapebas (PA), que em 2021 recebeu R$ 1,48 bilhão.
Conceição do Mato Dentro ocupa o terceiro lugar do ranking. Em 2021, o valor recebido pelo município foi de R$ 387 milhões.
“É um dinheiro muito grande que chega para a gestão das prefeituras de cidades com pouquíssima estrutura e pessoal qualificado para gerir”, afirma a mestre em Ciências Sociais e coordenadora do projeto De Olho na CFEM, Júlia Castro. “De que forma esse show do Gusttavo Lima vai colaborar para o fim da dependência mineral do município, que é a finalidade desse recurso?”, questiona.
Pela lei, não há impedimento em relação à aplicação da verba em eventos como o show, mas juristas afirmam que o correto é investir em projetos que de fato contribuam para diversificar o perfil econômico das regiões economicamente dependentes da extração de minérios, justamente por esta ser uma atividade cujo recurso é finito.
O prefeito do município, José Fernando Aparecido de Oliveira (MDB), defende que a Cavalgada é um exemplo de diversificação econômica da atividade de mineração.
“Ainda que literalmente o dispositivo legal faça restrição só à despesa corrente e ao pagamento das dívidas, se você olhar para o ordenamento jurídico como um todo a destinação do recurso é indevida”, diz o pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito, Leonel Cesarino Pessôa. “É preciso olhar para o conjunto e não só para um dispositivo isolado da lei”, diz.
Extrema pobreza
Localizada a 160km da capital Belo Horizonte, Conceição do Mato Dentro tem 12.373 pessoas inscritas no CadÚnico, que reúne dados sobre famílias brasileiras de baixa renda.
Mais da metade, 6.868, corresponde a pessoas em situação de extrema pobreza, com renda até R$ 100 por mês, e 10% estão em situação de pobreza, com renda mensal de R$200.
“Embora o peso da CFEM no orçamento municipal seja bastante significativo, verifica-se que esta riqueza não é convertida em bem-estar para a população”, afirma a nota técnica do De Olho na CFEM.
Os pesquisadores ainda concluem que a situação é ainda mais grave no contexto da pandemia de covid-19, pois mesmo nos momentos mais críticos a mineração operou enquanto atividade essencial, o que intensificou a exposição e vulnerabilidade de trabalhadores e população local.
“É escandaloso num contexto de crise, de inflação, e enquanto a arrecadação da CFEM tem aumentado consideravelmente”, afirma a coordenadora do projeto, Júlia Castro.
Brechas na lei
Estabelecida pela Constituição em seu artigo 20, o texto que dispõe sobre a CFEM afirma que a compensação deve ser aplicada em projetos que direta ou indiretamente revertam em prol da comunidade local em melhorias da infraestrutura, qualidade ambiental, saúde e educação.
“É como se fosse uma compensação pela perda do patrimônio”, explica a economista e pesquisadora da Universidade Federal do Pará, Maria Amélia da Silva Henriquez, que trabalhou entre 2008 e 2012 no Ministério de Minas e Energia e coordenou o grupo que revisou o texto da CFEM. “O que deveria haver é um plano de uso desse recurso, porque quando a mineração acabar será preciso uma atividade alternativa para a cidade não virar uma cidade fantasma”, diz.
Segundo a coordenadora do projeto De Olho na CFEM, o texto é vago, o que permite episódios como a contratação do show milionário de Gusttavo Lima. “A lei estabelece de forma clara como a CFEM não deve ser usada, para pagar pessoal e dívidas, mas ao se referir aos usos da contribuição, o tom é de orientação”, diz.
“É preciso mudar a lei. “Enquanto não houver mudança, esse tipo de coisa acontecerá”, afirma o professor de Direito Tributário da USP, Fernando Facury Scaff.
Entenda o caso
No dia 11 de abril a prefeitura de Conceição do Mato Dentro assinou um contrato com a empresa Balada Eventos e Produções LTDA, cujo sócio é Nivaldo Batista Lima (Gusttavo Lima). De acordo com o documento, o pagamento seria efetuado em duas parcelas, sendo a primeira, de 50%, paga no ato da assinatura e a fonte de recurso seria a CFEM.
Pelo contrato, a prefeitura também seria responsável por disponibilizar a estrutura do palco, dois camarins e transporte do artista e equipe, hospedagem “no melhor hotel da região” para 40 pessoas e pagamento de diárias de alimentação, no valor de R$ 4 mil.
Após o Ministério Público de Minas Gerais abrir uma notícia de fato para investigar o uso indevido da verba, a prefeitura de Conceição do Mato Dentro decidiu cancelar o evento. Em nota, o prefeito diz ter recebido “com perplexidade” a notícia de que o evento estaria sendo pago com verba da saúde e da educação.
“Referidas assertivas levianas e tendenciosas, demonstram absoluto desconhecimento sobre as formas de utilização dos recursos advindos da mineração, reguladas pela Lei Federal nº 13.540, que autoriza gastos com fomento econômico, bem-estar social, turismo, diversificação econômica, saúde, educação e outros”, afirma o prefeito.
Questionada por qual motivo o show foi cancelado, a prefeitura respondeu que a razão foi a “conveniência da administração pública, súmula 473 STF”. Em relação ao pagamento da primeira parcela, estabelecido pelo contrato, a informação é de que ela não foi paga pois “procedimentos prévios ao pagamento” não foram supridos.
Na última segunda-feira,30, o cantor fez um pronunciamento em rede social, em que afirmou ser vítima de “perseguições e inverdades”. “Não é porque é uma prefeitura que vou deixar de cobrar o meu valor”, disse. Ainda na live, Gusttavo Lima chorou e disse estar a ponto de “jogar a toalha”.
Em Roraima, o Ministério Público estadual também abriu procedimento para investigar a contratação de um show do cantor em São Luiz, por R$ 800 mil.
O Ministério Público do Rio de Janeiro também investiga irregularidades e superfaturamento na contratação de artistas, dentre eles Gusttavo Lima.
A reportagem não conseguiu contato com a assessoria do cantor.
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