BRASÍLIA - O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) usou o Ministério da Saúde para distribuir R$ 8 bilhões em troca de apoio político em 2023, causando um descontrole no orçamento da pasta.
O Estadão publicou uma série de reportagens revelando que o dinheiro atropelou critérios técnicos estabelecidos pelo próprio ministério sob o comando de Nísia Trindade. Após a publicação, o Tribunal de Contas da União (TCU) foi acionado para investigar o caso.
A seguir, cinco fatos que comprovam o descontrole no orçamento da Saúde:
1. Dinheiro bancou cidades sem capacidade para fazer procedimentos
O recurso enviado para algumas cidades superou em mais de 1.000% a capacidade efetiva de atendimento nessas localidades, enquanto outras ficaram sem recurso. Trata-se de um dinheiro destinado a procedimentos de alta e média complexidade, como exames e cirurgias, por meio da Portaria 544, assinada pela ministra Nísia Trindade em maio do ano passado.
O Ministério da Saúde impõe um limite que cada município pode receber, considerando a capacidade de atender a população, mas estourou esse teto em 651 municípios, sendo que em 20 deles o limite foi ultrapassado em mais de 1.000%. Isso significa que o dinheiro chegou para municípios que não têm hospitais, leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e equipamentos para realizar exames.
São João da Paraúna (GO), com 1.744 habitantes, tem apenas um posto de saúde e nenhum hospital. O município declarou ter feito 28 mil procedimentos de média e alta complexidade em 2023, incluindo 4 mil exames de urina. A prefeitura recebeu, em novembro, R$ 1,25 milhão para bancar procedimentos de alta e média complexidade por meio da portaria. Rio Verde (GO), por outro lado, com 225,7 mil moradores e uma produção que superou 2 milhões de procedimentos especializados em 2023, pediu R$ 126,7 milhões para bancar os serviços, mas não recebeu nada.
O ministério afirmou que fez uma análise técnica da necessidade de cada localidade na hora de enviar os recursos, mas pontuou que há dificuldades na comparação entre realidades sanitárias diferentes.
2. Governo alegou emergência para efetuar repasses sem dizer que emergência ocorreu
O governo não pode ultrapassar os limites impostos pelo Ministério da Saúde para enviar recursos para Estados e municípios. O limite impede que uma cidade receba mais do que precisa e outra fique sem o dinheiro necessário. Mas foi o que aconteceu.
O ministério classificou os recursos como “emergenciais” e, dessa forma, ultrapassou os tetos de financiamento da atenção básica e da alta e média complexidade ao efetuar os repasses. O Estadão questionou a pasta sobre a classificação, mas o órgão não esclareceu que emergência ocorreu.
Na pandemia de covid-19, por exemplo, havia um decreto de calamidade pública e a União repassou recursos sem precisar respeitar limites técnicos e financeiros. Neste ano, com a crise da dengue, o Ministério da Saúde editou uma portaria para repassar recursos emergenciais para Estados e municípios, exigindo um decreto de emergência das localidades, um plano de ação e uma distribuição proporcional do dinheiro considerando a população e os casos da doença.
Em 2023, por outro lado, não havia uma emergência nacional. Também não havia decretos locais que justificassem o repasse para mais de 4 mil municípios e R$ 8 bilhões em recursos federais “emergenciais”, como ocorreu. Mesmo se o dinheiro fosse de emenda parlamentar, teria que respeitar o teto. Ao alegar emergência e não carimbar a verba como emenda, o ministério atropelou os critérios.
3. Governo atendeu indicações políticas ao repassar verba da Saúde
O governo Lula atendeu indicações políticas na hora de liberar a verba. Integrantes do próprio ministério e parlamentares confirmaram ao Estadão que o recurso foi submetido aos parlamentares na hora de definir para onde iria. Quem centralizou esse processo foi o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, padrinho de Nísia no comando do Ministério da Saúde.
A movimentação de Padilha irritou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que tinha domínio sobre o orçamento da Saúde no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). No fim do ano, porém, o dinheiro foi rateado e atendeu aliados de Padilha e também aliados de Lira, além de outros integrantes do Centrão na Câmara e no Senado.
Os maiores beneficiados pelo montante de R$ 8 bilhões foram o governo de Alagoas (R$ 166,5 milhões), o governo do Maranhão (R$ 132 milhões) e a prefeitura de Maceió (R$ 103 milhões), reduto de Lira. Só depois aparecem cidades como São Paulo, Teresina e Curitiba. A lei exige que, mesmo com as indicações políticas, sejam respeitados critérios sanitários na distribuição do dinheiro da Saúde.
O Ministério da Saúde e a Secretaria de Relações Institucionais confirmaram que houve indicações políticas e apoio de parlamentares para as propostas enviadas por Estados e municípios, mas os dois órgãos negaram que Padilha tivesse poder de decisão dos beneficiários. O Ministério da Saúde alegou que seguiu critérios técnicos na hora de escolher as localidades contempladas.
4. Ministério tirou dinheiro de emendas para repassar verbas à revelia do Congresso
O Ministério da Saúde usou o dinheiro que estava reservado a emendas parlamentares de bancadas estaduais do Congresso para enviar verbas que não foram indicados pelos congressistas. Outras prefeituras foram beneficiadas, enquanto localidades apoiadas pelas bancadas ficaram sem dinheiro.
Os repasses ocorreram com o recurso das emendas de bancada não impositivas. Por serem não impositivas, o ministério não era obrigado a respeitar as indicações do Congresso. Esse recurso, porém, costuma seguir a mesma lógica de negociação.
Ao fazer os repasses à revelia do Legislativo, o ministério ultrapassou os limites de financiamento dos municípios e também classificou a transferência como emergencial, sem justificar que emergência ocorreu.
Em resposta à reportagem, o Ministério da Saúde afirmou que não era obrigado a atender indicações das bancadas e que portarias do governo sustentaram essa decisão. A pasta diz ter atendido propostas dos Estados e municípios por critérios próprios do Executivo.
5. Ministério da Saúde concentrou repasses no fim do ano e gerou descontrole no Orçamento
O Ministério da Saúde deixou para decidir o destino de R$ 4 bilhões, dinheiro para consultas, exames e cirurgias, na última semana do ano. O montante é 1.327% maior do que o destinado no mesmo período de 2022, quando as portarias da última semana definiram o destino de R$ 282,7 milhões.
Para atender indicações políticas, passou por cima dos critérios da pasta e classificou os recursos como emergenciais, efetuando uma correria de liberações nos últimos dias de 2023. Na última semana de 2023, o Ministério publicou 177 portarias, com repasses para 2.334 municípios brasileiros, além dos 26 Estados e do Distrito Federal.
O manejo fez com que a pasta começasse o ano de 2024 com um estoque de R$ 32,4 bilhões em despesas comprometidas em anos anteriores e ainda não pagas. O dinheiro acabou inscrito nos chamados “restos a pagar” (RAP).
O valor supera o orçamento total de 20 ministérios para o ano de 2024. É também 17,7% maior que o estoque do começo de 2023, herdado do governo de Jair Bolsonaro, segundo informações da Secretaria do Tesouro Nacional. O Ministério da Saúde disse que monitora a execução financeira constantemente, mas que teve dificuldades em 2023 com novos recursos que chegaram no fim do ano e que terminou o período com mais de 99% de execução do orçamento.
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