Clube Militar, de reservistas das Forças Armadas, fará evento de exaltação do golpe de 64

Senado é o único órgão dos Três Poderes que terá um evento dedicado a relembrar repressão da ditadura; no Executivo; Lula determinou que não fossem feitos atos para lembrar a data para não ficar ‘remoendo o passado’

PUBLICIDADE

Foto do author Monica  Gugliano
Foto do author Weslley Galzo
Atualização:

SÃO PAULO e BRASÍLIA - O Clube Militar, que não é subordinado ao Exército, à Marinha ou à Aeronáutica, embora seus associados sejam oficiais das Forças Armadas, fará um almoço para relembrar os “60 anos do Movimento Democrático de 31 de março de 1964″, como se referem ao golpe militar. Neste ano em que o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou que não sejam feitos atos para “remoer o passado”, o Clube manterá a tradição, e o general da reserva Maynard Marques de Santa Rosa será o orador no almoço. “Vou dizer aquilo que foi proibido de se falar e que não pode ser dito em mais de 90% dos nossos quartéis que foram silenciados”, disse Santa Rosa ao Estadão.

O general da reserva Maynard Marques de Santa Rosa será o orador no almoço do Clube Militar para relembrar os “60 anos do Movimento Democrático de 31 de março de 1964″, como se referem ao golpe militar Foto: GOVERNO FEDERAL

PUBLICIDADE

O almoço, no dia 27, na Sede Esportiva Lagoa do Clube Militar, será por adesão, e os ingressos custam R$ 95. Segundo Santa Rosa, os atos pelos 60 anos foram proibidos por que o governo é “inseguro” e acredita que pode esconder o que de fato aconteceu. “É a história do Brasil e ela não pode ser apagada pela vontade de alguns. É arrogância de quem quer apagar o passado. Não se pode esconder o que aconteceu na realidade e substituir isso pelas narrativas que foram criadas”.

Santa Rosa foi ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) no governo de Jair Bolsonaro, mas permaneceu poucos meses no cargo por discordar dos métodos e de muitas das ideias que surgiam no Palácio do Planalto. O discurso que fará durante o almoço não será o primeiro que Santa Rosa usará para se posicionar contra atitudes dos governantes eleitos. No segundo governo de Lula, ele criticou duramente a ideia de instaurar uma Comissão da Verdade.

Além de ter “caráter representativo, assistencial, social, cultural, esportivo e recreativo”, o Clube Militar se apresenta em seu próprio site como “um fórum de discussão dos grandes temas nacionais, buscando soluções para os problemas brasileiros por meio de conferências, comissões, painéis, pareceres e campanhas.” Atualmente, a entidade é presidida pelo general Sérgio Tavares Carneiro. Segundo noticiou o jornal Folha de S. Paulo, o filho dele, Victor Carneiro foi citado nas investigações da Polícia Federal sobre a participação de militares no suposto golpe de 8 de janeiro.

Em órgãos oficiais, só Senado fará evento para lembrar golpe

O almoço do Clube Militar deve ser um dos poucos eventos para lembrar o golpe de 64 neste ano. Não haverá eventos especiais e cerimônias como as realizadas no dia 8 de janeiro deste ano para lembrar a condenação aos atos golpistas realizados no ano anterior.

A duas semanas da efeméride do golpe de 64, somente o Senado tem um evento marcado para discutir a experiência de 21 anos de repressão promovida por agentes fardados. A ordem que circula no governo federal é que não sejam realizados atos para lembrar a data. Aqueles que já haviam mobilizado as estruturas das suas pastas, como é o caso do ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos), foram desautorizados pelo Palácio do Planalto. A Pasta cancelou um evento que seria promovido no dia 1º de abril, conforme revelou o jornal Correio Braziliense.

No dia 28 de fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou, em entrevista à RedeTV, que não quer ficar “remoendo o passado” e que as Forças Armadas “não podem ser tratadas a vida inteira como se fossem inimigas”.

Publicidade

“Estou mais preocupado com o golpe de janeiro de 2023 do que de 64, quando eu tinha 17 anos de idade”, disse. “Isso já faz parte da história, já causou o sofrimento que causou, o povo conquistou o direito de democratizar esse País, os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo”, disse o presidente. “Eu, sinceramente, não vou ficar me remoendo e vou tentar tocar esse País pra frente.”

O silêncio do governo numa data simbólica para a esquerda é interpretado como uma estratégia de Lula de não criar atritos com as Forças Armadas e pacificar os quartéis. “Lembra algum momento que um general foi chamado pela Polícia Federal para prestar depoimento?” questionou Lula na entrevista à RedeTV, dizendo que “em nenhum momento, os militares foram punidos como estão sendo agora”.

No Supremo Tribunal Federal (STF) não há tal preocupação com os humores externos quando o assunto envolve a ditadura. Mesmo assim, a data pode passar em branco na mais alta Corte do País, porque não houve, até o momento, o planejamento de um evento robusto.

Para o aniversário de um ano dos ataques golpistas de 8 de janeiro, a Corte organizou uma exposição artística que conduziu autoridades da política e do Judiciário num tour pelos locais que foram alvos da violência.

Ato de familiares de vítimas da ditadura coincide com ensaio militar na Praça dos Três Poderes Foto: Leonêncio Nossa / Estadão

PUBLICIDADE

O STF não chegou a ser fechado pela ditadura, mas sofreu com a ingerência dos militares nos anos de chumbo. O presidente Castelo Branco ampliou a composição do tribunal, de 11 para 16 juízes. Anos mais tarde, em 1969, já sob o Ato Institucional nº 5 (AI-5), três ministros foram aposentados compulsoriamente para acomodar aliados do regime.

Deputados petistas querem realizar sessão solene a despeito de ordem de Lula para o governo. Mas, até agora, existe apenas um requerimento de realização de sessão solene, com a proposta de que o nome do evento seja “Democracia Sempre, 64 Nunca Mais”. O pedido foi protocolado pelos deputados Maria do Rosário (PT-RS) e Zeca Dirceu (PT-PR), mas ainda não foi analisado por Lira.

“Eu entendo o presidente Lula, que quer pacificar o País, mas ele entende que a democracia exige da sociedade um posicionamento contra a ditadura, sempre”, disse Maria do Rosário à reportagem, ao defender a realização da sessão solene. “É a falta de memória da ditadura que ameaça a democracia”, prosseguiu. “Independentemente da posição do presidente Lula. Estou aguardando o presidente (da Câmara, Arthur) Lira. O objetivo (da sessão) é a democracia”, completou.

Publicidade

No Senado, o evento para discutir o golpe de 64 só acontecerá no dia 15 de abril, em vez das datas simbólicas de 31 de março e 1º de abril. Os autores querem destacar o dia em que o Marechal Castelo Branco tomou posse como primeiro presidente após o golpe. A proposta de realização do evento foi apresentada pelo líder do governo Lula no Congresso, Randolfe Rodrigues (Sem Partido-AP), no ano passado - ou seja, antes de o chefe do Executivo ordenar que todos os seus subordinados silenciassem sobre o assunto.

“O golpe militar de 1964 foi um dos eventos mais marcantes da história do Brasil, pois mudou radicalmente o rumo político, social e econômico do país. Por isso, é importante conhecer as causas, os fatos e as consequências desse período para, inclusive, compreender melhor a nossa realidade atual”, diz o requerimento apresentado pelo líder do governo Lula. “Com efeito, a realização da Sessão Especial no Senado Federal é simbólica e resultado diagnóstico da luta do Congresso Nacional contra forças autoritárias e antidemocráticas”, argumenta o senador no texto. Procurado para comentar se participará da sessão no Senado, Randolfe não respondeu até a publicação desta reportagem.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.