Com um acervo de 200 mil livros, a Biblioteca do Senado Federal guarda raridades. São obras de acesso restrito. No mercado privado de livros, algumas delas valem muito, como o mais antigo livro de posse do Senado: uma publicação estrangeira editada em 1633.
A obra Novvs Orbis, seu, Descriptionis Indiae Occidentalis, de Johannes de Laet, traz uma descrição geográfica, científica, etnológica e linguística da América, com destaque para o Brasil no período colonial. No mercado, um exemplar semelhante ao da biblioteca do Senado é oferecido à venda por R$ 30 mil.
A coleção de obras raras fica guardada em cofre no acervo, em Brasília. Para manusear, luvas e, às vezes, até máscaras são necessárias. São obras que acompanham a biblioteca há quase 200 anos, ou foram garimpadas de outros acervos ou foram presentes.
Muitos dos livros antigos, como o Novvs Urbis, foram publicados em latim ou grego, que eram mais comuns em relação às línguas vernáculas nos séculos seguintes ao surgimento do livro impresso. Ser antiga, inclusive, é um dos critérios para que uma obra seja considerada rara na Biblioteca do Senado Federal, mas não é o único.
O bibliotecário Abner Ribeiro de Noronha é o responsável pelas obras raras e explica como é feita a identificação e qualificação da obra para ganhar o título de rara no acervo da biblioteca.
“O critério vai depender muito da relação da obra perante o acervo. Muitas vezes, pode estar como obra rara aqui, mas em outra biblioteca, não. Um erro ortográfico pode tornar um exemplar raro, também. Além disso, existe o fator cronológico: se aparece uma obra do século XVI ou XVIII, já consideramos como rara”, explicou.
Há, porém, um jeito de ter acesso às obras raras sem precisar ir a Brasília e pedir autorização especial para ver os livros. A partir de 2009, as obras raras começaram a ser digitalizadas e disponibilizadas na internet. Atualmente, entre 4 e 6 livros por semana são digitalizados e adicionais ao site da biblioteca. O Novvs Urbis está entre as obras que podem ser baixadas e lidas.
O cuidadoso processo de digitalização
Duas pessoas ficam responsáveis por digitalizar uma obra. Enquanto uma manuseia o livro no scanner, a outra fica encarregada de salvar as imagens no computador e conferir se está legível. O equipamento não encosta no livro. Trata-se de um scanner planetário que utiliza uma luz com filtro, para não emitir radiação na obra, e realiza a leitura da imagem de forma lenta e em alta resolução.
Após o primeiro processo, são produzidos dois arquivos no computador: um deles, em alta resolução, fica guardado nos dados da Biblioteca do Senado Federal, caso aconteça alguma intercorrência com a obra física; e outro arquivo, em uma resolução menor, porém, legível, vai para a internet, disponível gratuitamente para a leitura de quem acessar.
De acordo com o chefe do serviço de biblioteca digital, André Luiz Lopes de Alcântara, o processo de digitalização existe há mais de 10 anos e ainda não é possível mensurar quanto do acervo já foi digitalizado, mas a meta é digitalizar tudo.
“Primeiramente, as obras raras são consideradas patrimônio nacional, têm domínio público, mas estão com acesso restrito por conta da raridade. Nós precisamos guardá-las dentro de um cofre porque possuem valor monetário, então, um jeito de tornar visível é digitalizar. Nosso método de trabalho é digitalizar todo o acervo de obras raras. O que não está digitalizado, vamos digitalizar”, contou.
Veja 10 obras raras para ler online
À pedido do Estadão, o bibliotecário Abner Ribeiro de Noronha separou uma lista de obras raras para os leitores conhecerem marcos importantes da história e literatura brasileira. Confira:
1. Novvs Orbis, seu, Descriptionis Indiae Occidentalis
Do geógrafo e historiador Joanne de Laet Antuerp, o livro é o mais antigo do acervo, de 1633. Inclui 14 mapas do cartógrafo da Companhia Holandesa das Índias Orientais, Hessel Gerritsz, e 68 xilogravuras. Trata-se de uma descrição histórica, geográfica, científica, etnológica e linguística da América. O autor tinha acesso às fontes, além de relatos da época de testemunhas oculares e desenhos de animais e plantas.
Na primeira edição da obra, em holandês, de 1625, o autor descreve, pela primeira vez, o Brasil, especialmente a Amazônia, e a época da tomada da Bahia. A segunda edição, de 1630, também em holandês, foi ampliada e revista, com novos mapas e ilustrações. A tradução latina de 1633 foi feita pelo próprio autor.
A obra pode ser baixada neste link.
2. Cultura e opulência do Brasil, por suas drogas e minas
O título do livro é extenso e, como escrito na época, continua da seguinte forma: “com várias notícias curiosas do modo de fazer o assucar, plantar e beneficiar o tabaco, tirar ouro das minas, e descubrir as da prata, e dos grandes emolumentos que esta conquista da America Meridional dá ao reino de Portugal com estes, e outros generos e contratos reaes [sic]”.
A obra é de André João Antonil, de 1837. O livro foi censurado no Brasil durante o Império. Há, somente, sete cópias do original. O autor italiano descreve minuciosamente a produção de açúcar, tabaco, mineração e criação de gado, mostrando a consolidação da economia colonial da época. Antonil imigrou para o Brasil disposto a conhecer a avaliar como se vivia e quais riquezas que o território podia oferecer à Portugal. Sua obra foi escrita depois de 25 anos no Brasil e foi em grande parte destruída - e proibida pelo governo de El Rei D. João V - para não aguçar a cobiça de franceses, holandeses e ingleses diante das potencialidades da colônia portuguesa.
A obra pode ser baixada neste link.
3. O casamento do diabo (imitado do alemão)
A obra é um manuscrito assinado por Machado de Assis, em 1863, mas que foi publicado de forma anônima na revista Semana Ilustrada. Na época da publicação, acompanhava uma indicação de que se tratava de uma “imitação do alemão”. No entanto, há suposições de que a obra passou por outro autor, um possível tradutor, pois Machado de Assis não sabia alemão, conforme ele mesmo afirmou em seu livro Falenas, publicado posteriormente.
A obra pode ser baixada neste link.
4. Dom Casmurro
Trata-se da primeira edição do clássico machadiano, publicado em 1899 pela editora Garnier, época em que Machado de Assis já era considerado o mais consagrado escritor brasileiro. O romance sofreu atraso no processo de impressão, só terminando em Paris em 5 de dezembro de 1899, e os exemplares desta primeira edição chegaram ao mercado brasileiro apenas em princípios de 1900.
A obra pode ser baixada neste link.
5. O Atheneu (chronica de saudades)
Considerado o primeiro romance brasileiro a tratar dos conflitos da adolescência, a obra de Raul Pompeia foi publicada quando o autor tinha 25 anos. É a primeira edição, de 1888, também considerada uma das principais obras do realismo brasileiro. O romance é interpretado como a soma de uma autobiografia do autor e ficção, contendo elementos expressionistas, impressionistas, naturalistas, simbolistas e parnasianos.
A obra pode ser baixada neste link.
6. Princípios de direito natural
Publicada em 1829, por Jose Maria Avellar Brotero, é considerado o primeiro livro didático de Direito do Brasil. Apresentava algumas teses avançadas para a época como a defesa do divórcio, a condenação do celibato clerical, apologia à liberdade religiosa e ideias contra a escravidão. A obra foi hostilizada pelo conservadorismo do fim do Primeiro Império.
A obra pode ser baixada neste link.
7. Sertum palmarum brasiliensium, ou, Relation des palmiers nouveaux du Brésil : découverts, décrits et dessinés d’après nature
Do botânico João Barbosa Rodrigues, a obra de 1903 conta com 174 gravuras e encadernação em linho verde com a placa de linho vermelho. Os exemplares completos são muito raros por terem sido as gravuras transformadas, muitas vezes, em quadros para efeito decorativo. Trata de todas as espécies de palmeiras do Brasil, cujo número total é de 383, sem contar as variedades, e das quais 166 foram descobertas por Barbosa Rodrigues. D. Pedro II distribuiu a obra nas bibliotecas do Brasil no século XIX.
A obra pode ser baixada neste link.
8. Revista Ilustrada
Inspirada no modelo de revista francesa ‘L’Illustration’, a Revista Ilustrada foi fundada pelo ilustrador Angelo Agostini, era quinzenal e tinha um formato pequeno de oito páginas. Na época, entre 1876 e 1898, foi considerada um grande acontecimento editorial que chegou a 4 mil exemplares, sendo a maior até então alcançada por um periódico na América do Sul. A revista teve atuação política pelo movimento pela abolição da escravatura e pela proclamação da República. Além disso, publicava crônicas e contos de escritores como Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Quintino Bocaiuva.
A obra pode ser baixada neste link.
9. Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura
O folheto, de autoria de José Bonifácio D’Andrada e Silva, em 1825, enquanto deputado da Assembleia Constituinte Brasileira, foi grande sucesso durante o século XIX e reimpressa diversas vezes. O documento é uma representação seguida de um projeto para a abolição do tráfico, melhoramento da sorte dos escravos, e extinção da escravidão, a qual não chegou a ser apresentada porque a Constituinte foi dissolvida no mesmo ano. O documento mostra que já existia um pensamento antes da Lei Áurea, em 1888, contra a escravidão no país.
A obra pode ser baixada neste link.
10. Projecto para a extincção do elemento servil no império do Brazil
Outro documento que mostra que existia preocupação para acabar com a escravidão no Brasil antes de 1888 trata-se de uma carta do senador José Thomaz Nabuco de Araújo à Sociedade Democrática Constitucional Limeirense, em 1869. Os documentos sobre a abolição da escravidão foram as primeiras obras raras a serem digitalizadas.
A obra pode ser baixada neste link.
Siga o ‘Estadão’ nas redes sociais
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.