De vez em quando se escuta por aí que assuntos internacionais não são capazes de influenciar as eleições no Brasil, muito menos as municipais. Talvez isso tenha validade em um passado quando as redes sociais não tinham uma intromissão fatal sobre os destinos das candidaturas e, por consequência, não se discutia tanto a questão dos valores de cada postulante a um cargo eletivo. Hoje, qualquer assunto tem o potencial de inflamar e definir um pleito. A dinamite do momento é a questão venezuelana, com o regime de Nicolás Maduro, claramente derrotado, tentando se manter no poder por meio da repressão aberta à população. Mas independentemente das eleições no Brasil, ficará sempre uma série questões a ser perguntada a qualquer candidato petista, a saber:
Afinal vocês defendem ou não a democracia ou foi só oportunismo para vencer a eleição em 2022? Frente a evidências cavalares de que houve fraude na Venezuela, e mesmo assim vocês endossarem o apoio ao presidente Nicolás Maduro, o que garante que são de fato comprometidos com o processo democrático no Brasil? E como fica a questão da ligação do Partido dos Trabalhadores com a defesa dos chamados direitos humanos? É para valer? É conversa fiada? Ou só vale para atacar ditadores de ideologia inimiga? Qual a palavra que vocês têm aos milhares de refugiados venezuelanos que hoje vivem no Brasil? Têm coragem de dizer, olhos nos olhos deles, que a eleição de Maduro é legítima?
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Já tivemos um tira-gosto dessa questão no debate para a prefeitura de Porto Alegre em que a candidata petista Maria do Rosário tentou tergiversar afirmando que se tratava de autodeterminação dos povos. Ora, há uma chance gigantesca de que se o critério for esse, de autodeterminação, frente às fraudes na nação caribenha, Maria do Rosário deveria então defender a retirada de Maduro do poder.
A questão venezuelana diz respeito ao Brasil porque coloca o Partido dos Trabalhadores em enorme contradição a respeito de quase tudo o que diz representar. Afinal, consideram a democracia um valor universal ou apenas um meio para implantarem um socialismo aos moldes de outras nações autoritárias? Consideram nosso sistema eleitoral apenas uma “democracia burguesa” que deve ser descartada frente a outros objetivos? Aquela conversa de “frente ampla”, democrática, para derrotar o bolsonarismo “golpista” era estelionato eleitoral? É dramático imaginar que hoje as duas grandes forças eleitorais brasileiras tenham um compromisso apenas relativo e circunstancial com a democracia.
A posição petista com relação à Venezuela também tira do PT uma espécie de trunfo com relação ao chamado bolsonarismo. O ex-presidente teria tentado preparar um golpe de Estado, mas a resistência democrática, capitaneada pelo PT, acabou triunfando em 2022, querem que fique assim a história. Ora, como naqueles filmes em que o mocinho é na verdade mais um vilão, e o vilão inicial segue vilão, a posição petista mostra que o compromisso firmado com os brasileiros era um estelionato, uma farsa.
Vale à pena perguntar mil vezes à presidente do PT, Gleisi Hoffman, qual é o compromisso de seu partido com a democracia? Perguntar se acha a Venezuela uma democracia. E, também, se considera o Brasil de fato uma democracia, não importa se vençam governos de esquerda ou direita. Em abril deste ano, a dirigente petista chegou a afirmar que o modelo chinês deve ser um exemplo para o Brasil, fica a dica do que pensa a dirigente.
Também é preciso interpelar o candidato à prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos, qual é a sua posição sobre a questão. Afinal, democracia é ou não um valor inegociável para o candidato do PSOL – em tese um partido à esquerda do PT? Ele já chegou a afirmar que Cuba, onde só se pode concorrer candidatos do Partido Comunista, é uma democracia. Afinal, Boulos, na sua opinião houve ou não fraude na Venezuela, consegue opinar objetivamente, sem escamotear para outros assuntos?
Sempre tão loquaz quando há microfones por perto, o presidente Lula ficou em silêncio frente aos jornalistas em sua viagem ao Chile esta semana. Teve de ouvir calado uma lição de coerência do seu colega chileno, o presidente Gabriel Boric, no sentido de que ditadura é ditadura, não importa a cor da bandeira ou da camisa. O mesmo recado deve ter calado fundo no assessor internacional Celso Amorim, aparentemente sempre disposto a dar mais uma chance ao regime de Maduro e com notória má vontade com a oposição venezuelana. Percebam, inclusive, que Amorim fala mais em pacificação do país do que em democracia. Ora, uma ditadura, por meio da força, pode pacificar uma população.
O Brasil petista tem alguns inegáveis trunfos a exibir, mesmo que não sejam resultados de suas políticas. Entre eles a baixa taxa de desemprego – talvez em parte consequência da famigerada reforma trabalhista da também famigerada gestão Temer. O governo ainda conta com uma relativa recuperação econômica com média de crescimento de 3% anual do PIB. Mesmo assim o país segue dividido e o presidente Lula possui taxas de aprovação apenas semelhantes a que tinha Bolsonaro com 18 meses no governo - quando o ex-presidente acumulava declarações absurdas sobre a pandemia. O país hoje se divide quase igualmente entre os que aprovam a gestão Lula, os que a reprovam, e os que a consideram regular. Temas como a posição petista sobre a Venezuela podem ser o argumento que falta para o pessoal que não morre de amores pelo governo - e nem o odeiam - optar por candidaturas adversárias ao petismo. Que seja o preço da malandragem.
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