Qualquer que seja o desfecho da crise envolvendo o resultado das eleições na Venezuela, o governo Lula arcará com as consequências políticas de ter dado respaldo a Nicolás Maduro.
Embora o assunto nada tenha a ver com a disputa municipal, uma vez que a eleição no Brasil não é para prefeito de Caracas, certamente será explorado na campanha, jogando luz sobre o discurso bolsonarista de que o PT e seus aliados defendem ditaduras como a do país vizinho.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva rompeu o silêncio nesta terça-feira, 30, para dizer que não vê o que ocorre na Venezuela como nada grave, anormal ou assustador. Após ter corrigido o rumo da prosa na semana passada, Lula deu mais um tiro no pé.
Em entrevista à TV Centro América, afiliada à Globo em Mato Grosso, o presidente amenizou as denúncias de fraude no resultado proclamado pelo Conselho Nacional Eleitoral, que anunciou a vitória de Maduro. Só faltou dizer que, “quando um não quer, dois não brigam”, frase usada por ele em janeiro de 2023 para se referir à guerra entre Rússia e Ucrânia.
“É normal que tenha uma briga. Como resolve essa briga? Apresenta a ata (de votação)”, resumiu o presidente numa alusão à ausência dos boletins de urna. “Se a ata tiver dúvida entre a oposição e a situação, a oposição entra com um recurso e vai esperar na Justiça o processo. E vai ter uma decisão, que a gente tem que acatar. Eu estou convencido que é um processo normal, tranquilo”, emendou.
Mais do que ninguém, Lula sabe, no entanto, que o Judiciário na Venezuela foi capturado há tempos e é controlado pelo regime chavista. Não há nada de “tranquilo” nessa história.
Na conversa por telefone que teve com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, horas mais tarde, Lula adotou outro tom. Como ele costuma dizer, a cabeça pensa onde os pés pisam. E, ao que tudo indica, de acordo com o interlocutor e o público que se quer atingir.
Um comunicado divulgado pela Casa Branca informou que Biden e Lula concordaram no diagnóstico de que os desdobramentos das eleições na Venezuela representam um “momento crítico” para a democracia na América Latina.
O resultado da disputa vem sendo cada vez mais contestado pela oposição, para quem o vencedor foi o diplomata aposentado Edmundo Gonzáles Urrutia. Até agora, os protestos contra Maduro deixaram mais de 700 presos e ao menos 11 mortos.
Nota do PT passou pelo crivo do presidente
As declarações de Lula deram mais munição para os discípulos do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em São Paulo, onde está prevista a reedição do duelo entre o petista e o capitão reformado – protagonizada agora pelo deputado Guilherme Boulos (PSOL) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB) –, os ataques nas redes sociais se intensificaram.
Engana-se, porém, quem pensa que a cúpula do PT agiu à revelia de Lula ao divulgar nota, na noite de segunda-feira, 29, reconhecendo a vitória de Maduro e chamando o processo sob suspeita de “jornada democrática”.
O texto que uniu a moderada tendência Construindo um Novo Brasil (CNB) e a esquerda petista passou pelo crivo do próprio Lula, naquele dia.
Mesmo assim, no grupo de WhatsApp do Diretório Nacional do PT, o diretor da Fundação Perseu Abramo Alberto Cantalice disse que a nota produzida pela Executiva petista foi uma “precipitação”.
“A única coisa que está se ‘precipitando’ neste momento é a escalada de violência por parte da extrema direita”, reagiu Valter Pomar, dirigente da Articulação de Esquerda.
Para o cientista político Aldo Fornazieri, o processo eleitoral da Venezuela foi fraudado na origem, quando as candidaturas de María Corina Machado – que venceu as primárias da oposição – e Corina Yoris acabaram barradas.
“Como os democratas no Brasil reagiriam se Bolsonaro tivesse feito aqui um processo igual ao do Maduro?”, perguntou Fornazieri. Na sua avaliação, Maduro adota hoje “as mesmas práticas e os mesmos valores” preconizados por Bolsonaro.
“Quem está defendendo Maduro vai pagar um preço político-eleitoral alto. Como condenar o golpe de 8 de janeiro se associando a uma ditadura?”, provocou o cientista político. “Não pode haver dois critérios de democracia.”
O problema é que Maduro usa o discurso da conspiração para atrair apoio e se manter no poder. Ao ver complô por toda parte, ele sustenta desde 2013 – quando assumiu a cadeira de Hugo Chávez – que os Estados Unidos estão por trás de uma manobra para derrubá-lo do Palácio de Miraflores. Pela sua contabilidade, já passam de 30 os planos montados para assassiná-lo.
Secadores viraram inimigos da revolução
Em 2016, quando a Venezuela estava prestes a ter um colapso de energia, Maduro chegou a declarar guerra aos secadores de cabelo, como relatou Ariel Palacios no livro América Latina – lado B.
Os secadores consumistas (de energia) viraram inimigos da revolução bolivariana.
Só falta agora Maduro, supersticioso, incorporar a figura do general Marcos Pérez Jiménez, o ditador da Venezuela que, em 1958, fugiu do país.
“Vamos embora, pois os pescoços não voltam a crescer”, decretou Jiménez a um assessor, naquele longínquo mês de janeiro, com medo de ser degolado por militares traidores. Pobre Venezuela.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.