O comandante do Exército, general Tomás Miguel Miné Ribeiro de Paiva, afirmou que, se o Brasil tivesse um aparelho policial – tanto a parte ostensiva como a parte investigativa – funcionando bem, haveria poucas ações de Garantia de Lei e Ordem (GLO) no País. “A ação de GLO tem de ser interpretada como uma exceção. Só que o Estado não interpreta como uma exceção, interpreta como uma complementação. Na ausência do aparelho policial, na ineficiência do aparelho policial, você (Forças Armadas) vai lá e atua.” Para Tomás, o modelo de GLO é inseguro e não produz um efeito duradouro. Ele completou: “inseguro para a população, se a tropa não estiver muito condicionada”.
As declarações do comandante do Exército estão no livro Forças Armadas na Segurança Pública: A visão militar, organizado pelos pesquisadores Celso Castro, Adriana Marques, Verônica Azzi e Igor Acácio (editora FGV, R$ 59,00, 328 páginas). Eles entrevistaram nos últimos dois anos 16 oficiais do Exército e da Marinha que participaram de ações na área da segurança Pública no Brasil desde 1992. Ali estão os generais Sérgio Etchgoyen, Walter Braga Netto e Richard Fernandez Nunes e o almirante Carlos Chagas Vianna Braga, além do coronel Romeu Antônio Ferreira, analisando como as “operações se desenvolveram e o impacto que tiveram entre os militares”.
A entrevista de Tomás foi feita quando o general ocupava ainda o Comando Militar do Sudeste (CMSE), antes de ser nomeado, em 21 de janeiro, para comandar a Força Terrestre em razão da crise que opôs o presidente Luiz Inácio Lula da Sulva e o primeiro comandante do atual governo, general Júlio César Arruda depois dos eventos do dia 8 de janeiro, quando bolsonaristas invadiram e deprederam as sedes dos três Poderes, em Brasília. Diante da falha da PM do Distrito Federal de conter os vândalos, Lula se recusou a adotar uma GLO na cidade e, para restabelecer a ordem, decretou intervenção federal na segurança distrital.
Ao fazer um balanço de operações de GLO desde 1992 para os pesquisadores do livro, o general Tomás considerou que a atuação dos militares nesse tipo de ação “foi muito boa, porque a gente produziu muito pouca baixa em civis, em inocentes”. “Você podia ter uma coisa muito pior. E é inseguro para a tropa porque o cara não se sente totalmente seguro para, dentro das regras de engajamento, atuar às vezes em defesa própria. Ele fica preocupado com as consequências que virão depois”, disse.
Em 2012, o general comandou a Força de Pacificação da Operação Arcanjo VI, no Complexo da Penha e do Alemão, no Rio. Ele mal havia assumido o comando da 11ª Brigada de Infantaria Leve (Campinas) quando sua tropa foi deslocada para o Estado vizinho. “Então, tinha que visitar e conhecer as unidades e, ao mesmo tempo, ir para a operação. A operação foi de janeiro até, mais ou menos, abril, fiquei três meses.”
O general conta que, na época, “tinha havido um desgaste natural (da ação), até da paciência da população, que vai se esgotando com aquela ocupação continuada”. Seu contingente foi o escolhido para entregar a área às Unidades de Polícia Pacificadora. “Então, a gente sentiu a necessidade de dar uma retomada, de ser um pouco mais contundente, um pouco mais ‘braço forte’, menos ‘mão amiga’.” No Alemão, o general intensificou patrulhas, o que levou a mais confrontos com traficantes de drogas.
Haiti
Tomás comparou sua experiência no Rio com a que teve no Haiti, onde chefiou o sétimo contingente brasileiro, na Minustah. “No Haiti, a gente tinha muito mais liberdade de ação. Primeiro, porque era um país destruído. Então, quando você faz qualquer tipo de ação humanitária, aquilo ali é muito bem aceito e muito rápido. Eles precisam de tudo. O controle democrático é muito menor, então aumenta, muito mais, a responsabilidade daquilo que você vai fazer. Se você tinha que investigar, entrar em uma casa... com respeito, você entrava. Não tinha como buscar um juiz, porque não havia”, disse.
Para ele, era necessário haver no Haiti um equilíbrio e um comedimento muito maiores na maneira de atuar do militar. “Você tinha saído de uma experiência de quase combate urbano para uma experiência de pacificação. Toda a ajuda humanitária, por exemplo, sempre dava uma confusão, porque era todo mundo faminto, todo mundo desesperado por tudo. Quando você ia distribuir comida, sempre dava em quebra-quebra, em gás de pimenta, alguma coisa… Era difícil, nesse aspecto aí. Mas o povo aceitava muito bem”, afirmou.
O general relatou que no Complexo da Penha e no Alemão, a postura do militar era diferente. “O cara chega muito aberto, porque é a nossa gente. Na sua maioria, quase a totalidade, é gente séria, honesta, trabalhadora, mas que está acostumada a ser dominada por um porcentual pequeno de gente ligada ao crime organizado.” O general realçou a importãncia da idoneidade das informações para atuar em uma GLO. “O crime organizado é difuso. Se você tiver (entre a população da comunidade) 1% ou 1,5% dessas pessoas que estão ligadas ao crime organizado, dá o que? Três mil, 3,5 mil pessoas ligadas ao crime organizado que dominam 240 mil pessoas. Então, ficou difícil, como a gente fala, ‘conquistar coração e mente’.”
O general afirmou que ao chegar ao complexo pensou em usar a experiência do Haiti e tentar ajudar as pessoas com ações humanitárias. “Era mais difícil, porque você não identificava as lideranças e nem identificava, efetivamente, quais eram as necessidades. Tem muita liderança, muita gente – ONG, líder comunitário, líder evangélico, Igreja Católica.” De acordo com ele, a conversa com a comunidade não era fácil. “O desgaste que ocorreu… porque o tráfico de drogas nunca parou. Lá no Haiti, não tinha tráfico de drogas, porque a população é tão miserável… O que tinha muito, no Haiti, era arma.”
Ele conta que no Rio o Exército também encontrou “muita arma”. “Mas a gente conseguiu, efetivamente, com a Operação Arcanjo, diminuir o número de armas longas, que a gente tinha ali expostas de uma maneira ostensiva, o tempo todo; o tráfico de drogas, não.” E concluiu: “Em nenhum momento a gente conseguiu que a venda de droga para varejo parasse. Porque a venda de drogas já é doméstica. Pelo menos essa foi a minha leitura.”
O general concluiu seu relato sobre a ação no Alemão e na Penha afirmando que a efetividade da operação durou “um tempo” no qual se conseguiu diminuir o “estado calamitoso de descontrole de Segurança Pública naquela área”. “Mas, depois, volta. Esse é o problema.” Para ele, a GLO não vai resolver o problema. “Quem tem que resolver o problema é o Estado como um todo. O Estado tem que aportar recursos, aportar pessoas, conduzir políticas públicas para mudar aquele status quo que é o cerne de onde prolifera a insegurança pública.”
A exemplo do governo Lula, que preferiu a intervenção no DF a uma decretação de GLO, Tomás também faz um balanço diferente da ação do Exército durante a intervenção federal na Segurança Pública do Rio, em 2018. Segundo ele, ali, efetivamente, a Força teve oportunidade de mexer no aparelho policial. “Aí, tem um cara que foi craque nesse negócio, que é o general Richard (Nunes), meu companheiro no Alto Comando. Esse camarada atuou no coração das polícias, botando gente séria.” Tomás considerou o resultado da intervenção “bem consistente”. “Aí, quando houve a eleição, mudou o governo. O novo governador (Wilson Witzel) optou por modificar todo o esquema. O legado da Intervenção, ele praticamente mudou tudo.”
Por fim, para o general, a presença nesse tipo de operação tornou o Exército diferente. “Ele evoluiu com as experiências e as lições aprendidas nas operações. Por exemplo, as coisas, hoje, não se resolvem só no domínio físico, no domínio dos equipamentos, dos meios, dos materiais – blindados, armas, munição... Não. Hoje, você tem que ter superioridade de informações, tem que ter um domínio informacional maior, melhor.” Segundo ele, ´´e preciso construir uma narrativa baseada na legalidade que, ao mesmo tempo, proporcione “maior sinergia, que comunique bem”. E ter inteligência integrada e esclarecimento para a população, além de comunicação social. “Você tem que trabalhar nas redes sociais. Você tem que trazer a comunidade para junto (de você).”
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